31.10.08

TUDO


Volto quando as folhas estiverem molhadas e tudo parecer mais limpo.

30.10.08

CURIOSO


Egon Shiele, 1915

Curioso ter tido a sensação de não querer acabar. Shiele vicia, como nenhum outro.

29.10.08

DEPOIS


(Egon Shiele)

Depois do abraço. Depois do riso, do pranto, do suor e do cansaço. Depois, quando tudo restou perfeito.

28.10.08

ANTES


Antes do dia da inteireza. Antes do grito. Antes do aperto de peito . Antes da vida. Antes de tudo.

27.10.08

ESQUECIMENTOS


Vou à procura dos beijos que ficaram longe, das palavras que não disse e da consciência que deixei sozinha.

26.10.08

LUX FRÁGIL

As pernas estavam abertas. Todos entramos pela enorme vagina. Lá dentro havia gente e música. Havia homens a conversar com homens, camas com corpos deitados e copos com lágrimas contentes. As mulheres estavam despertas. Em frente ao rio, dentro daquela vagina, todos éramos quase iguais.

24.10.08

QUE IMPORTA?


Que importam os dias se os troco pelos beijos, as horas pelas palavras e o tempo pela consciência?

23.10.08

INSTANTES


(Egon Shiele)

Dia em que me espreguiço. Porque é preciso esticar os instantes das certezas.

22.10.08

OS BRAÇOS DOS DIAS QUE NÃO VIERAM


Brandi Carlile - The Story

Hoje deveria estar em frente ao mar, olhar para as algas verdes com a ilusão de um encarnado de sangue. Hoje deveria estar em pé, em frente ao vento cortante, com a ilusão de um cheiro longínquo. O dia do começo, do grito, da força, das pernas em arco, da vida pequena, da fragilidade a prometer força, da família reunida à volta do berço, da avó que ri e pega ao colo, da mãe com lágrimas salgadas e da irmã menina com medo dos beijos que podem fugir.
Hoje deveria estar quieta, com o pensamento a nascer, de novo, como se fosse possível voltar ao dia em que vi a luz e chorei. Julgo que foi um dia de sol, entre ruas estreitas espreitei quem, em mim, operou algum destino. Entre pedras de calçada gasta, vim ao mundo nua, suja, cheia de sangue e calor. O meu pai pôs em mim o riso e a minha mãe, o pranto desmanchado e quente. Os vizinhos correram a levar a nova a amigos próximos e conhecidos íntimos. Julgo que foi um dia de sol, entre a cama castanha e a cómoda com gavetas arrumadas. A parteira não se cansou, foi limpo, como quando se quer tirar do forno o cabrito pronto. Parece-me que ninguém se queimou, não houve reclamação de que era gorda, magra, feia ou bonita. Nasci com a calma de um meio-dia em ponto, marcada a hora de respirar, sem água.
Hoje deveria estar perto do mar, a lembrar-me do dia em que me puxaram para fora e me ensinaram a comer, a lembrar as primeiras horas de sono em lençol e o primeiro banho de sabonete cor-de-rosa que a minha mãe comprava na mercearia de uma avó austera com sorriso sofrido.
Hoje, no dia em que continuo viva, vou estender-me na relva a olhar para a finitude do que já experimentei. Depois correr, correr para os braços da história que ainda falta contar!

In: PnetMulher

21.10.08

CERTEZAS


Tenho a certeza que a história que falta contar tem braços longos, macios e muito distantes do tempo que se foi embora.

20.10.08

IMPRESSÕES


(Egon Shiele)

Quando olho para os anos que já se foram embora, parece que nasci há muito pouco tempo.

18.10.08

MAU USO DE FERRAMENTAS


Gostava muito que se fizesse uma avaliação séria e rigorosa ao desempenho dos nossos governantes. Exigir, como ponto prévio ao processo, uma espécie de triagem que possibilitasse a clarificação dos motivos que suportam as atitudes e as decisões.
A possibilidade de uma terapia aplicada a cada pessoa que tem nas mãos o poder, seria uma das soluções.
É imprescindível que os portugueses entendam que, por trás de uma má utilização de ferramentas políticas, pode estar uma má gestão de ferramentas do foro pessoal e íntimo.

16.10.08

BillTracking


(Egon Shiele)

O Bill Tracker é o indivíduo que, mediante registo num site da Internet, se dedica a seguir o rasto das notas de euro em todo o mundo. Dizem que é divertido. Registam, numa base de dados, o número de série das suas notas, e podem conseguir saber onde estiveram os preciosos papelinhos numa determinada data, o caminho que a nota percorreu, o país onde foi impressa, o país onde começou a circular, enfim… a história de um percurso por esse mundo fora.
Parece que Portugal está em sétimo lugar na lista dos países mais utilizadores da prática. Trata-se de um hobby e não só, há já uma espécie de “comunidade europeia de seguidores de notas de euro”.
Eu acho muito interessante. Considero de importância crucial sabermos a “vida” das notas que pela nossa carteira passam. Ler a entrevista feita a um Bill Tracker foi, para mim, experiência digna de registo. O senhor estava, de facto, empenhado no percurso da nota, já tinha registado mais de mil números de série e todos os dias ia vasculhar os caminhos das ditas por essa Europa fora. Era um cidadão empenhado, com objectivos na vida, sabia-se integrado num grupo de investigação importante e, dizia, ser o seu passatempo de eleição.
Suponho que passa horas em frente ao mapa da Europa a olhar para as linhas de percurso das notas e a transpirar de satisfação pelo facto de ter, em sua posse, a verdade da “vida” das ditas.
Entre Lisboa, Covilhã, Sevilha, Salamanca, Paris, Bruxelas, Génova e Nápoles, a nota que se teve em mãos, chegou à Islândia, irá ser trocada por coroa. Já tinha passado em Oslo sem paragem nem câmbio. Fabuloso! É, por certo, uma sensação estrondosa, comparável à satisfação que se tem quando, de um filho, se recebe o telefonema de férias a dizer que está bem, em Skaftafell, a olhar para a finitude das bétulas.

15.10.08

ABRAÇO


(Egon Shiele)

Porque, no acto, se transcendem os corpos. Porque o abraço é, sem mais, aquilo que o corpo transpira.

14.10.08

PRECIOSAS MEMÓRIAS


(Egon Shiele)

Tempo com os filhos. A maior fortuna. Memória que só morre quando o ar acaba.

13.10.08

DOBRAS E GRITOS (26)

16- EGON SHIELE



Nasceu a 12 de Junho de 1890 em Viena.
Pintor austríaco ligado ao movimento expressionista.
Em 1907, Schiele conheceu
Gustav Klimt
que, interessado no seu trabalho, fez dele o seu "protegido". Ajudou-o comprando-lhe trabalhos, apresentando-o a pessoas influentes e arranjando-lhe modelos.
Insatisfeito com o carácter conservador da academia, Schiele abandonou os estudos e criou o Grupo Nova Arte. Liberto do conservadorismo, começou a explorar a forma humana e a sexualidade.
Grande representante do expressionismo austríaco, os seus trabalhos representam seres humanos transfigurados por sentimentos fortes. Amantes revirados em lençóis brancos, mulheres e auto-retratos. Fez ainda algumas paisagens e residências burguesas, nas quais exibe um estilo cuidadoso e elegante, de traços bordados, com fortes contrastes entre ocres e cores primárias.
As suas obras encontram-se em museus de Viena e da Suíça assim como em importantes colecções particulares.
Morreu a
31 de Outubro de 1918
.

10.10.08

CRUA E FABULOSA


(Mário Cesariny)

Amor é quando a gente pensa que pode engolir a vida toda. Amor é quando a gente espreita pelo buraco da fechadura para ver outra nudez. Amor é quando a gente explica às amigas que respira mais fundo.
Amor é quando a gente abraça um filho e entende que o mundo é muito mais bonito do que julgávamos. Amor é quando a gente desmancha a cama inteira de cheiro e pensa que os próximos lençóis vão também cheirar assim. Amor é quando a gente sabe que o silêncio pode ser mais gordo que as palavras.
Amor é quando a gente calça os sapatos pretos e se transforma em mulher rainha. Amor é quando a gente se despe devagar e pede ao céu uma luz que grite o desejo. Amor é quando a gente chega a casa com o fôlego preparado para entregar tudo. Amor é quando a gente ensina a nossa filha a ser mulher, sem pressa de a tornar adulta. Amor é quando a gente telefona porque sim. Amor é quando a gente pensa, todos os dias, coisas surpreendentes. Amor é quando a gente abre um livro de histórias e julga que as letras são nossas. Amor é quando a gente explica aos alunos que existe paixão.
Amor é quando a gente fica com dor nas costas porque descuidou um só dia de respiração. Amor é quando a gente mata o ego e percebemos que ele existia só para dificultar. Amor é quando a gente principia fins que julgávamos terem ido embora. Amor é quando a gente estica os braços até ao que o outro não disse. Amor é quando a gente faz tudo com a carne de quem agarra a vida, crua e fabulosa.

9.10.08

A FERRO E FOGO


(Mário Cesariny)

Hoje voltei do nada. Regresso ao que sou, todos os dias, deixando os detalhes à porta. Tranco-me no espaço das essências encontradas a ferro e fogo.

7.10.08

SÁBIA PACIÊNCIA


(Mário Cesariny)

Na vida, é preciso esperar o momento de afirmar a existência com força. Esperar que os dias aconteçam, que o corpo se incline para o alto. Esperar que a alma berre a justiça. Depois, com a calma que vamos buscar ao instinto, percebemos sempre que valeu a pena estarmos atentos.

6.10.08

DEPOIS DO CANSAÇO


As coisas ficam mais brandas quando, sem medo, misturamos água com grito. Depois do cansaço, resulta manso, o abraço tranquilo.

3.10.08

MANIAS


Ter a mania que as pessoas devem ser perfeitas só porque as amamos, é pior que pensar que elas são mesmo perfeitas por causa do nosso amor.

2.10.08

IMERSÃO ESPIRITUAL NA MATÉRIA


(Mário Cesariny)

Ando com um livro em mãos desde Agosto. Não me apetece lê-lo nem me apetece parar de o ler. Como se de um gelado se tratasse. Vai-se derretendo na mão e, ao mesmo tempo que sentimos o fresco pegajoso e doce a escorrer, temos a sensação de querer engoli-lo depressa. Coisa curiosa. Tarkovski em perspectiva no decorrer de muitas páginas sobre os seus filmes.
Coloca-se a questão da espiritualidade e da matéria no seio de uma teologia materialista. A pergunta insiste em ser feita: o sujeito entra no domínio do sonho e da espiritualidade quando perde o contacto com a realidade material que o rodeia ou, ao contrário, quando abandona o domínio do intelecto e se envolve numa relação intensa com a realidade material?
É possível atingir, através dos despertos e atentos sentidos, através do contacto profundo e intenso com a matéria, uma certa forma de transfiguração que propicia o encontro com uma paisagem onírica? Que postura espiritual profunda é essa que se busca no abandono do intelecto e na imersão à realidade material? Que tipo de espiritualidade se encontra quando, na terra dura e húmida, deposito todos os sentidos?
Na nossa tradição ideológica clássica, a aproximação ao espírito é vista como elevação, como um processo em que o corpo se desembaraça da força da gravidade que o prende à terra e levita, como se nada mais existisse além do sublime, além da alma que se livra do universo material para pairar em absoluto.
No universo de Tarkovski, penetramos na dimensão espiritual através do contacto directo e físico com o peso, a dureza e a humidade da terra que nos puxa, inevitavelmente, para um centro.
Ando com um livro em mãos desde Agosto. Sei que há a ilusão de um fluxo de tempo que resulta da estreiteza da nossa consciência mas, Einstein que me desculpe, por muito estreita que a minha consciência seja, há semanas que procuro a resposta a uma questão fundamental: a matéria é ou não é o oposto da espiritualidade?

1.10.08

PRIMEIRA E SEGUNDA


(Mário Cesariny)

Hoje sou duas. A primeira está entregue ao mundo que a absorve. Não sei se o tempo permitirá ir à procura da segunda, da que está inteiramente livre.