27.5.12

A caixa dos botões


 
 
 
 
 
Os botões são objectos que, não estando pregados na roupa, servem para ocupar caixas inúteis. Os botões, não estando pregados na roupa fazem, das caixas inúteis, objectos imprescindíveis.

26.5.12

Dia de festa

Egon Schiele
























Presente embrulhado, antes da curiosidade romper o laço. Pés colocados dentro de sapatos altos. Batom e sombra e rímel e contentamento. Sair de casa com o perfume por trás da ânsia e da beleza de uma túnica com decote generoso. Dia do riso e dos abraços em cima da vida.

24.5.12

Professora, como é que se cresce?

Olhei para ela e sentei-me. Convidei-a a sentar-se. Olhou para mim com a lágrima a querer sair. Sorri-lhe. Sorriu com esforço.
 A conversa não foi longa, o tempo suficiente para que entendesse a importância da pergunta "quem sou eu"?. 
Depois levou uma referência de leitura. Disse-me: - nunca fui a uma livraria. E eu olhei-a com a mão em cima do ombro e respondi-lhe: - Está a tempo, vá depressa e, quando chegar lá, sente-se, olhe e coscuvilhe as prateleiras que a chamarem. 
Saiu com o papelinho na mão e a esperança adiada, mais uma vez.  

23.5.12

Bom Sonho


Hoje sonhei contigo. Estavas contente e lembraste a noite em que não pude ir contigo à homenagem desta grande senhora que canta. Hoje sonhei com o teu sorriso e com o teu poema.

22.5.12

Pedra dura


Andou com um pé atrás do outro e o da frente não avançava como queria. Andou tremendo de frio e suando com o calor das ideias em fila indiana para um almoço amigo. Andou enquanto pensava, porque o pensar acompanha os pés na estrada. Andou enquanto se perdia e perdeu-se num andar sozinho. Andou com a vontade magra de querer ir a lugar nenhum, e os pés tropeçaram numa pedra dura e preta que o caminho inútil lhe apresentou.

21.5.12

"Do que já não é para o que ainda não é"


“- Pense, cavalheiro, pense na grandeza do progresso que se cumpre diante dos nossos olhos – no progresso que transporta os homens do passado para o futuro, do que já não é para o que ainda não é, do que se recorda para o que se espera. Os selvagens não preveem o futuro, não pensam no porvir, não preveem nem provêm. Contudo, nós, homens civilizados, nós, homens novos, vivemos para o futuro e à mercê do futuro. Toda a nossa vida está voltada para o que virá, construída na previsão do que acontecerá."

Giovanni Papini; O Espelho que foge

20.5.12

Sabor


É doce, como o sabor do chocolate, com um travo pequeno a amargura. É doce porque mastigo devagar, e todos os dentes permitem o contentamento. É doce e pequeno, desfaz-se na boca em partículas de prazer. É o presente cheio de sumo e riso. É tão doce que desconfio. Porque o sabor existe quando, nele, colocamos o corpo inteiro.

19.5.12

Cheiro


Cheira a futuro, ao pedaço de tempo que existirá. Cheira à vontade de ser que empobrece o que é, hoje, presente projetado. Cheira ao que ainda não veio e pode não acontecer. Cheira a pouco. Insisto em inalar uma espécie de adiamento. Parvoíce.

17.5.12

Mulher cansada

Anda uma mulher cansada das pernas que não saem de um sofá magoado e das mãos que não se separam da caneta encarnada. Anda uma mulher a precisar de separações que tragam duradoiros abraços. Anda uma mulher à procura dos dias sem sofá e sem pernas paradas no azul de um adiamento.

16.5.12

Nariz partido


Depois do cansaço sentou-se na cadeira da sala escura com quadros na parede. A cadeira era velha, os quadros falavam e a sala tinha mais de trinta anos. Sentiu a preguiça invadir-lhe as pernas e ficou. Parada. Abriu os olhos e viu que o escuro era igual ao do dia anterior. 

Os escuros não são todos iguais mas aquele era tão particular que preferiu vê-lo com calma. Encontrou todos os fantasmas lá dentro, conversou com eles, serviu-lhes água fresca e riu de tudo muito alto. 

Quando o som do telemóvel a fez saltar da cadeira velha numa sala escura com quadros que falam, bateu com o nariz na mesa e gritou, muito antes de ler a mensagem desfasada da sua realidade.  

15.5.12

A mesa das palavras

Quando eu era pequenina, acreditava nas fadas e nos anjos. Eram entidades vividas debaixo de uma caixa de cartão num armazém cheio de camisolas. As fadas ditavam os sonhos e os anjos explicavam o caminho para lá chegar. 
Deitada de barriga para baixo, com os cotovelos fixos no chão, fazia o meu entendimento encher-se de palavras simples. Depois, pegava nas palavras e subia as escadas, convicta de que, no sótão, as encontraria reunidas, à volta da mesa redonda que a minha mãe usava para dobrar a roupa.

14.5.12

Descida em escorrega quente

Depois veio o dia de calor. Temperatura alta turva pensamentos e faz, da pele, escorrega onde caem os afectos. Sempre gostei de escorregas, mas nunca do calor! 

2.5.12

Cheia de raiva



Não me vou embora sem perceber o grito e a dobra que o enrola. Depois, sento-me a olhar para o dia que não volta e desembrulho a vida cheia de raiva.

1.5.12

Coisas que me inquietam (38)


Nem sempre desejo as coisas que quero. O desejo pode ser o contrário da vontade desmedida e cega. Isso irrita-me.