31.1.12

Desejos escondidos

Juarez Machado




















Os desejos escondidos são da cor de um final de dia de Verão. Arrumam-se num cinzento pálido e vêm ao de cima num laranja que esmorece. Porque o sol se vai embora no momento em que queríamos que ficasse e, ao mesmo tempo, a noite chega desencontrada do tempo que escolhemos para dormir. Os desejos que se escondem são assim, intermitentes enquanto olhamos para eles com os olhos postos numa indecisão que desregula.

30.1.12

Piso 12

Frank Mahler















Estavam nervosos. A tarde era de sol e a vontade não tinha chuva. Os dois à espera de um reencontro com o medo em cima das pernas. Subiu o elevador com o saco pequeno na mão direita. Saiu no piso 12. O desejo e a saudade esperavam escondidos atrás de um telemóvel desligado há dez anos!

24.1.12

Parva vontade

É a minha vontade, a vontade que desarruma as ideias e as leva para gavetas impróprias. A vontade que se agarra e se tapa com o cobertor castanho, se empurra para debaixo do sofá de um escritório muito desarrumado. Parva, esta minha vontade sem caminho.

20.1.12

A menina da caixa de seda

Andrew Wyeth
 
 
 
 
 
 
Era uma vez uma menina.Tinha tanto medo de cair que andava muito devagar. Um dia percebeu que os passos lentos a levavam perto de ideias rijas e que o medo pode ser a causa de algumas durezas.
As durezas que a menina aprendeu ficaram marcadas nas pernas. Todos os dias as via. Os passos lentos continuavam lentos, as ideias cada vez mais rijas e o medo todo dentro de uma caixa de seda cor de rosa.
A menina que tinha medo de cair não cresceu, ficou à espera que o tempo passasse. Quando descobriu que o tempo passou mais depressa que os seus passos sentou-se e abriu a caixa, o medo já lá não estava!
 

18.1.12

Prazer ausente

Quando, do gelo tirou as mãos, conseguiu dizer ao corpo todo que o arrepio se assemelha a um prazer ausente. Fez das mãos instrumento de gozo maior. Porque o sexo não está senão no sítio do corpo que pede para gritar.


17.1.12

Sumo branco

Não te esqueças do corpo e do peso, do suor e do berro, de todo o movimento que buscas no desassossego do chão desarrumado. Não te esqueças que o dia vai nascer. Arranca de mim os sentidos e faz com que me apegue à alma que me devora. Nunca mais que  o corpo, quando o cheiro impregna a cama e todas as ideias se esvaem em sumo branco.

16.1.12

Cheiro da certeza

Não me deixes sair sem perceber se os sentidos estão alinhados com o prazer. Não me deixes ir embora sem o cheiro da certeza e do sentir. Não fiques parado a olhar para o meu despir, reage com os dentes fechados em boca que espera. Os pés estão perto. Junta-os, faz deles objeto de prazer. Os pés estão tão perto quanto as mãos, delas resulta o tremor que todo o corpo repete quando o calor se confunde com o desejo que não queres adiar.

15.1.12

Quieta

Destapou a cara com a violência que tinha posto no abraço. Empurrou-a com a leveza do desejo e disse-lhe: fica quieta enquanto eu te quero. Calado lhe mostrou os gestos, os nomes e os movimentos. Calado, fez dela objeto de gozo. E ela deixou. Deixou os braços e as pernas e o corpo inteiro para o seu silêncio. Deixou a quietude fora da porta para que pudesse, com os braços e as pernas e o corpo inteiro, dizer muito mais que um líquido. Calado lhe mostrou que a vida começa e acaba onde os olhos querem.


14.1.12

Consentimento

Chegou cedo. Tinha nas mãos a dureza. Depois de tudo o que fez, agarrou-se com força ao que não disse e dormiu. Quando soube que tinha de fugir, deitou-se com o desejo todo na ponta dos dedos. Depois usou-se e usou todo o espaço para consentir.


12.1.12

COISAS QUE ME INQUIETAM (36)

Perceber que a carta não era para mim, depois de telefonar para a operadora reclamando de um erro que não era deles.

Vik Muniz

11.1.12

Atenções

Henri Cartier Bresson



















A atenção está tão instalada dentro da vontade que é capaz de a deslocar consigo para lugares pouco olhados, mesmo na hora de voos rasantes e barulhentos.

10.1.12

Palavras em cima de fumo

Henri Cartier Bresson














Os outros são aqueles que connosco não vivem. Os outros são todos os que existem do lado de fora do nosso afeto. Conhecemo-los, passamos por eles com frequência, sabemos que vivem perto mas a nós não estão ligados. Partindo da certeza de que, aos outros, nada se deve, supõe-se que, por causa deles, nada se deixe de fazer. Um comportamento individual subjugado ao que os outros pensam ou dizem é um comportamento inautêntico, falso e cobarde. Por mais que a língua alheia se afie em comentários, deduções, ou suposições, será sempre uma língua fora do meu alcance. Livres que são, todas as gentes, rumores ou certezas badaladas por causa de mim, serão apenas leves trajetórias de palavras em cima de fumo. Formas de estar e perceber podem ser interpretadas por outros, desditas e inventadas, mas, mais não serão que fontes de desprezo absoluto.

Viver em função das palavras que saem das bocas alheias ou decidir atitudes em função de desditos criados porque sim, é perceber que ainda se não encontrou a maturidade. Livres que são, de facto, todas as gentes, urgente o entendimento de que, aos outros não interessa a vida minha. E se interessar, que com ela preencham as horas vazias, fora e longe que quem, como eu, se digna materializar a indiferença.

Sendo a liberdade a ausência de submissão, de servidão ou determinação; sendo a presença da autonomia e da vontade, só pode ser livre a pessoa que faz da conversa alheia, monte de pó para varrer. 

Para Descartes, age com maior liberdade quem melhor compreende as alternativas que existem à ação. É livre, pois, quem passa pela vida percebendo que a alternativa à língua afiada dos outros, só pode ser uma: desinteresse. Falem os que querem falar, restem livres os que escolherem seguir o caminho dos moucos.

8.1.12

Corpo interrompido

Tiago Taron



















Imagine que um dia o braço bloqueia. Imagine que os pés querem andar e não podem. Imagine ainda que nada consegue fazer quanto ao braço que bloqueia nem quanto às pernas que podem parar. Imagine-se com a visão de um corpo interrompido.

6.1.12

A ponta da vontade

Vik Muniz














As minhas pernas e os meus braços ganharam vida própria. O caminho é sempre o mesmo. Todos os dias o mesmo caminho, à mesma hora, e com a mesma intensidade na ponta da vontade. A ponta da vontade é o lugar exato onde se reúnem todos os desejos que vivem à mesma hora, no mesmo espaço. E agora que já expliquei a quem não quer saber que, tenho uma vontade com ponta, vou-me embora!