25.6.12

Comboio ausente

(Foto minha)



















A indecisão é uma escada rolante que não se consegue subir nem se sabe descer. A indecisão é um caldo que não está quente nem frio. Entre as duas temperaturas e entre todos os degraus, balançam as escolhas sempre adiadas, enquanto se mastiga a pastilha, se deixa o copo cheio e se entra no comboio ausente.

22.6.12

Combate nas trevas

Amor, sofrimento, raiva, paixão e fome. Amor porque que se agarra com força. Sofrimento porque se esfola o cotovelo. Raiva porque se encara o inimigo na esquina fria. Fome porque se deseja com a carne cheia de sangue. Amor e sofrimento porque se combate nas trevas. Raiva e paixão porque se entalam os dedos no mais duro dos tormentos. Fome porque se quer muito que as palavras combinem. Escrever é colocar as cores nos sentimentos e os sons em todas as ideias.

20.6.12

Dura tábua e fria pedra


Miró
 
 
 
 
 
 
 
 
A dureza dos objectos pode causar dor. Aguente-se quem bate na pedra fria ou escorrega na dura tábua. A textura dos objectos pode enganar distraídos. É mole o objecto que conforta e acomoda, há um aconchego falso na moleza. A dor não está lá mas, depois do sono lânguido e quedo, levantem-se os que na maciez caíram: aprenderam mais do que quando escorregaram na dura tábua?

(E depois vêm as ideias de quem pensa que sim e de quem pensa que não. Há os que julgam sinistra a pergunta, há os que pensam dar a resposta, há os que avaliam quem escreve com pontos de interrogação, há os que rejeitam quem ousa dizer mal da maciez e há, ainda, os que aplaudem as frias pedras.)

16.6.12

A melhor cadeira

Teve dúvidas e não agiu. Era importante o silêncio que vinha de alguma sabedoria acumulada nas articulações gastas pelo tempo. Ouviu depois de se ter ouvido e pensou que, primordiais, são as coisas que nos afetam. A certeza de que o silêncio era a melhor companhia. Sabia-os ávidos de palavras, com o desejo na ponta da língua para que as frases soltassem gritos e raivas. Sabia-os prontos porque os sentia inquietos. Aquietou-se e não teve as dúvidas do início. Percebeu que não se fazem perguntas aos que não têm respostas nem se pedem respostas aos que não sabem formular perguntas. Contemplou a cor das flores. Respiração pequena transformou-se e transformou-a. Porque o silêncio é sempre a melhor cadeira quando o cansaço nos invade.

13.6.12

Suga-Tempo


“Foi então que o destino me fez encontrar o vosso avô; ensinou-me a compreender o que são os desejos, o que é a espera, o que é a esperança, como estão estritamente ligados uns aos outros, e como se pode arrancar a máscara do rosto a esses fantasmas. Chamámos-lhes  Suga-Tempo, porque, tal como as sanguessugas, sorvem do nosso coração a verdadeira linfa vital, o tempo. Foi nesta mesma sala que ele me ensinou a dar os primeiros passos no caminho que conduz à vitória sobre a morte, a esmagar a cabeça às víboras da esperança…”
Gustav Meyrink

12.6.12

Somos tempo coagulado

“E digo-vos que, apesar de tudo o que se consegue fazer na terra, disso renasce sempre uma nova espera e uma nova esperança: o universo inteiro está impregnado do hálito pestilencial produzido pela morte de um presente acabado de nascer. Quem não sentiu já a extenuante prostração que nos invade na sala de espera de um médico, de um advogado, de uma repartição pública? Pois bem, aquilo a que chamamos vida é apenas a sala de espera da morte. De repente, percebi naquele mesmo instante o que é o tempo: nós mesmos somos formas geradas pelo tempo, corpos que parecem matéria, mas não passam de tempo coagulado. “
Gustav Meyrink

10.6.12

Pano do pó.

Era uma vez uma mulher e um homem. Davam as mãos todos os dias. Quando ela tirava, da gaveta, o pano do pó, ele proibia-lhe o gesto. Depois endireitavam-se em frente ao que era importante. O pano ficava na bancada. As mãos continuavam perto. Porque os dias todos eram a prova de que o pó não se limpa com os panos que estão nas gavetas.

8.6.12

E depois?

E depois de tudo ter sido dito, veio o silêncio que a noite escondeu debaixo do colchão que se cansou. E depois de tudo ter sido feito, restou a memória breve do que se não disse. E depois,  à janela do contentamento,  a vida continuou.

6.6.12

Coisas que me inquietam (39)



A vontade de ir embora. Desaparecer das nuvens e do sol e do ar e do vento que consome as flores. A força que move os pés para longe da paragem e do medo. A garra de ter mais força ainda, para encontrar tudo aquilo que me faz falta. Impossível. Porque é preciso o que não tenho e isso irrita-me.

5.6.12

Se os pés se trocarem


Se os pés se trocarem levanta-te. Procura o equilíbrio por trás da nuca e concentra a atenção na estrada à tua frente. Não te encandeies, prepara a alma para as subidas e respira com a vontade no peito. Se os pés se trocarem, percebe que o nariz em cima da terra te fará acreditar que podes olhar para cima, que podes ver mais do que de pé, quando corres atrás de disparates. Se os pés se trocarem percebe que, impossível, só o medo.

4.6.12

Pés trocados


Não vás por aí, escolhe o caminho doce e arrisca o não pensamento. Não vás pelo lugar do escuro e do áspero. Foge da dor que te persegue e inventa uma realidade macia. Não vás por aí, os pés vão trocar-se e podes cair.