21.2.10

PARIDADE


Ter uma filha que cresce a olhos vistos e que quase atinge a minha altura é sinal de que o tempo existe, mesmo que seja produto de um movimento contínuo da consciência. O espaço torna-se divisível e, melhor que tudo, as palavras começam a fazer sentido idêntico para duas mulheres que começam uma nova fase: a da paridade.

20.2.10

CONSCIÊNCIA


Há noites que alteram o nosso estado de consciência. Noites brancas pintadas de vermelho. Noites com cheiro a jasmim e quente e incenso e pó e luz e água e medo e grito e pranto e riso e dor e contentamento.

19.2.10

EM CASA COM PAULA REGO

Fui à Casa das Histórias. Ver o meu quadro preferido fez-me voltar atrás.
Aqui, ainda não sabia que a Bela Adormecida estava morta.

18.2.10

PÉS QUIETOS


Lembro-me da noite em que explicou a razão de ser do espaço e do tempo. Tinha um copo de vinho na mão e, enquanto as frases se soltavam da boca, todo o conhecimento se desprendia do lugar onde estava arrumado. Tem o conhecimento arrumado em gavetas e, de vez em quando, abre uma a uma sem nunca misturar o que nelas está guardado. É fantástico olhar para os seus pés, firmes no chão da sala, enquanto as frases se constroem sozinhas por causa do seu pensamento.

A lucidez com que fala é parecida com a transparência da água num copo de cristal. Os pés estão sempre lado a lado, em cima de um chão que conhece e que percorre enquanto não fala. Está sempre sentado quando usa palavras. É impressionante. Parece que quer que elas se movam só numa direcção, por isso se mantém quieto com os pés.

17.2.10

AMOR EM ESTADO ADULTO


No dia em que ela afirmou a liberdade, ele entendeu o sentido de tudo. Viver sem cadeado. Um amor sem corrente e com a costura precisa para o entendimento. Aquele amor sem cancela que os dois entendem como coisa feita de propósito para se voar. Não há perguntas porque as respostas lhes antecedem, sem medo nem punição. Não há confronto nem cobrança e a verdade é a coisa dita com mais frequência.

Fazem da vida, material de conhecimento, da cama, lugar de combate; da mesa fazem lugar de palavras e da estrada lugar de procura. Entendem a existência como coisa individual, tempo de estar consigo para poder estar com o outro. Nas noites em que, longe, sentem o desejo perto, telefonam para o transformar em corpo. Quando os olhos se vêem, tudo o que viveram sozinhos é motivo de troca, de riso e de contentamento.

Não querem saber se é casamento, namoro, encontro ou outra qualquer designação definidora de coisa superior. Isso. Coisa superior, vivida sem a limitação do outro, sem juízo de valor ou pergunta pateta. Coisa que, apenas quem ama em estado adulto consegue viver.

14.2.10

DEPOIS

Há muito que não escrevo sobre o amor. É coisa de muita importância e eu tenho andado a tropeçar em banalidades. Coisas de pouca importância que roubam tempo à importância das coisas. Agora interrompem-se os dias. Carnaval. Máscaras datadas em cima de caras sempre mascaradas provocam-me enorme sensação de urticária.

Há muito que não escrevo sobre o amor. É coisa séria. Depois das ondas do mar, depois da marginal percorrida, depois das noites frias e da areia molhada, depois do suspiro e depois de tudo o que o amor permite que seja e que aconteça.

(Lou Reed; Perfect Day)



P.S. Fica a sugestão: o filme de Woody Allen "Tudo Pode Dar Certo", supera qualquer expectativa. Nada melhor para quem pretende entender o princípio de incerteza de Heisenberg.

13.2.10

ONTEM HOJE E AMANHÃ



Eu era muito pequena. Na rua estreita vivia, no final de uma descida íngreme e sombria, uma vizinha que passava os dias com a mãe atrás de um balcão cheio de tarecos. Eram tachos, canecas, pratos, bonecas, talheres, vassouras, piaçabas e tampas de sanita ao pé de baldes. Era a minha vizinha das músicas, das letras e das brincadeiras no degrau de pedra baixinho onde me sentava para cantar. Eu usava bibe às riscas para não sujar o fato domingueiro. Ligávamos o rádio perto do ouvido e cantávamos como se não houvesse nem ontem nem hoje nem amanhã. Não podia imaginar que, passados trinta e cinco anos, um aluno me ofereceria o disco. Hoje, sem bibe, sem vizinha e sem rua estreita, a memória fica como se o tempo não tivesse qualquer importância.

12.2.10

DO CÉU À TERRA


Samuel Bak

Um dia de nevoeiro pode ser mais bonito que um dia de sol. A tristeza pode possuir maior grandeza que a alegria. Porque o cinzento é mais poderoso que o branco e a beleza do poder é mais densa que a do contentamento. Talvez por pertencer ao tipo de beleza que permite a supremacia, a audácia, o caminho; mesmo quando o sol se esconde e o fumo desce do céu à terra.

11.2.10

MESA REDONDA


A propósito de uma mesa redonda e da troca de estranhas e bonitas ideias, publico aquilo que Fields me ofereceu num dos seus comentários:

“Seja o que você quer ser, porque você possui apenas uma vida e nela só se tem uma chance de fazer aquilo que quer. Tenha felicidade bastante para fazê-la doce. Dificuldades para fazê-la forte. Tristeza para fazê-la humana. E esperança suficiente para fazê-la feliz. As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas. Elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos. A felicidade aparece para aqueles que choram. Para aqueles que se machucam. Para aqueles que buscam e tentam sempre. E para aqueles que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas.”
(Clarice Lispector)

Obrigada, estimada e atenta mulher.

9.2.10

PORTA DE FRIGORÍFICO

Numa porta branca de um frigorífico branco, numa casa branca de uma Lisboa branca, a cozinha convida amigos a entrar. Enquanto tiro o pacote de natas para os bifes que fervilham, leio num íman bem à minha frente:
“Cinema é arte. Teatro é vida. Televisão é mobília.”
Quanta verdade posta numa porta branca de um frigorífico branco numa casa branca de uma Lisboa branca. Até faz impressão.

8.2.10

VENHAM DIZER-ME


Venham dizer-me que o amor é lindo, que as flores dançam e que os pássaros cantam. Venham depressa exigir felicidade a quem sabe que o corpo a consome e a alma não a aproveita. Venham falar-me da sabedoria em cima de um prato de riso e massa fresca. Venham pedir favores a quem não sabe o que são e depois gritem todos de raiva podre. Venham dizer-me da injustiça dos fortes para com os fracos, da arrogância dos ricos e do lamento dos pobres. Telefonem-me aos berros por causa da conta da luz e apaguem o lamento com que vão pagá-la. Agora venham dizer-me que é o sofrimento que desenvolve a força da mente que eu acredito e aplaudo.

7.2.10

COISAS FORA


Amadeo Modigliani

No dia em que eu descobrir a forma de deitar coisas fora sem que o lixo as engula, no dia em que eu puder entregar gavetas a pessoas que as não têm, regressarei a uma tranquilidade mais limpa.

6.2.10

UMBIGO


Amadeo Modigliani

Coisa que serve para nada, depois de já ter servido para tudo. Não gosto de olhar para o meu umbigo, faz-me lembrar placenta e útero e sangue. Há quem queira deixar de o ter e, por isso, entra na sala de cirurgia. Prefiro-o ao nada que é o liso.

5.2.10

PÉS


Maurice Denis

Nunca me lembro que tenho pés. Quando, de vez em quando, os estico para o colo da minha Sílvia, percebo, como nunca, a sua existência. Depois descasca-se o cansaço com a lima, molham-se com o cheiro da água quente e, dali saio com menos de mim. No dia seguinte, os meus pés têm menor dimensão. Finos e mais macios que antes, parecem ser outros que coloquei para me distrair do chão que piso todos os dias. O colo da Sílvia transforma os meus pés em outros. Porque as mãos que ela tem são íntimas dos pés de que nunca me lembro.

4.2.10

MÃOS


Paul Klee

As mãos que comem são as mãos que limpam. As mãos que trabalham são as mãos que mexem. As mãos são sempre ferramenta para tudo. Agarram pessoas, copos, cabelos, roupa, lixo, livros e talheres. Levam à boca o alimento e tiram da porta as chaves de casa. Carregam na campainha e ligam o telemóvel. As mãos que pegam no gel, espalham-no pelo corpo, coçam as costas vazias de medo e penteiam cabelos desconexos. São instrumentos de chegada e de partida. Mãos. Lugar que, no corpo, ocupa espaço sempre descoberto, mesmo quando as luvas tapam afazeres.

3.2.10

ENGANO


As pessoas más julgam que as outras são más.
As pessoas invejosas julgam que as outras são invejosas.
As pessoas mentirosas julgam que as outras são mentirosas.
As pessoas boas julgam que as outras são boas.
As pessoas verdadeiras esperam verdade das outras.
As pessoas honestas esperam honestidade e… um dia, as pessoas percebem que é um engano julgar os outros a partir de si próprio.

2.2.10

PEDRO NA AUTO ESTRADA


Luísa conduzia na auto-estrada a 150 Km à hora. O sol de Inverno limitava-lhe a visão. Alcatrão gasto e carro pouco preparado. Pensou ser o tempo de trocar de máquina, já que os dedos pediam outro tipo de volante, outro tipo de assento. A estrada estava limpa de gente. Cinco da manhã. Regressavam a casa os que tinham a certeza do dia que nascia. Os outros ainda dormiam sem certezas, perto das almofadas cobertas de branco.

Um carro ultrapassou-a. O homem olhou e seguiu em frente, como que a dizer que estava ali. Luísa não entendeu e voltou a passar pelo lado esquerdo de quem lhe travava o andamento: parvo, pensou.

Depois de algumas ultrapassagens parecidas com uma corrida improvisada, os carros mantiveram-se lado a lado, entre a noite e o dia que, prestes a aparecer, prometia estranha aventura.

“Eu sou o Pedro. Café?”, estava escrito num papel colado ao vidro. Não podia ter sido escrito durante a viagem. Por certo tinha-o pronto para mostrar em ultrapassagens pensadas. Luísa sorriu e acenou com a cabeça. Deixou que o carro seguisse atrás de si e, alguns quilómetros depois assinalaram a saída para a estação de serviço. Pedro seguiu-a com todo o entusiasmo posto no rosto.

Luísa não desceu do carro, tirou da carteira um pequeno papel engelhado e escreveu: “eu não gosto de café e o meu nome situa-se entre o meu e o seu carro.” Luísa.

Atirou o papel para o asfalto no momento em que Pedro se preparava para lhe abrir a porta. Arrancou à velocidade permitida pela lei e pelo discernimento.

1.2.10

SEMPRE CLOONEY



A pressão de um emprego que consiste em despedir pessoas, dizer-lhes que estão dispensadas de um lugar que ocuparam durante anos.

A pressão auto-imposta de uma vida sem compromissos.

A realidade amorosa colocada (entre parêntesis) porque assim o exige quem pretende ter mais que uma família estruturada.

A tentativa de uma ligação que se julgava repudiar.

Depois do conteúdo de um filme despretensioso e muito engraçado, o charme, a classe, a atitude do que se mantém, simplesmente Clooney.

E ainda, a melhor frase: “considera-me uma pessoa igual a ti, mas com vagina”.