(Miró)
Hoje era o dia do aniversário do avô. Tenho a memória da lareira antiga e alta onde me proibia de mexer no lume. Eu acreditava que, se mexesse, podia fazer xixi na cama de noite.
Li, num Jornal daqueles que chega a nossa casa sem que tivéssemos pedido nada, a seguinte manchete: há homens portugueses que abdicam da carreira para ficar em casa com os filhos. Lavam, passam, limpam, trocam fraldas, enfim, dedicam-se às tarefas domésticas do quotidiano, as que um homem casado e pai de filhos deve fazer de forma igual à mulher com quem vive, com quem se casou e com quem teve filhos. Não entendi muito bem porque razão esta é uma noticia de jornal, seja ele qual for. Mas pronto, isto sou eu, com o meu mau feitio, a considerar que os portugueses deviam ser e estar de forma mais esclarecida. Não estão, é um facto, já perdi a esperança e tenho pena.
Perder o sentido de humor é não conseguir ver, com os olhos da inteligência, para lá do que acontece. Perder a capacidade de rir é não conseguir perceber, para lá do que acontece, que nem tudo pode ser levado a sério. Perder o sorriso é, para lá de tudo, ficar sem alma. Não ter sentido de humor, nem riso nem sorriso é existir sem ter vida.
Diz o povo: os olhos são o espelho da alma. Há que submeter ao domínio da crítica alguns lugares comuns. Este, parece-me resistir ao filtro pensado de uma conduta racional lógica. Os olhos não espelham a alma, é o olhar que a denuncia. Se a alma for a essência que encerra todo o ser que sente, o olhar é, sem dúvida, o espelho do que acontece cá dentro. Há olhares vazios, penetrantes, desafiadores, perigosos, desagradáveis, amorosos, agressivos. Algumas vezes os olhares parecem não fazer parte dos olhos nem da cara, como se o gesto saísse, por momentos, do corpo que o produz.
DOBRAS E GRITOS (11)
Sempre me disseram que tinha um olhar incomodativo. Não me incomoda.
Fui tomando consciência, ao longo da vida, que não há conceitos que substituam sensações, nem sentimentos que possam submeter-se a palavras retiradas do filtro frio e seco da capacidade aglutinadora do pensar. O homem continua a ser racional e é isso que lhe permite progredir, construir uma linguagem, comunicar. Tem sido essa exclusiva capacidade que o tem empurrado para o progresso científico e tecnológico e, para o mais profundo dos erros cometidos no que diz respeito às relações humanas. Se pararmos para sentir o que somos, teremos, com certeza, sensações mais nítidas do que os conceitos que as segregam. SER não se resume a um aglomerado de especulações filosóficas. SER é sinónimo de sentir, se assim não fosse estaríamos a manipular, por via da razão, aquilo que alimenta toda a alma.