Vieira da Silva
O telefonema de um amigo é sempre recebido com gosto. Tinha que responder a perguntas sobre a vida e a morte. Pedido de ajuda surgiu e foi aceite. Sabia-o inquieto.
Desliguei o telemóvel com a ideia de que teria que definir a vida. Raras vezes me preocupo com definições, penso a partir de incertezas e isso limita o acto de definir que é, ele próprio, uma limitação. A tarefa não se apresentava fácil.
A vida pode ser a oportunidade que nos dão para dizermos quem somos. Pode ser o tempo que nos oferecem para a descoberta do eu. Pode ser a angústia dos dias vividos sem rede. Pode ser a alegria do improviso. Pode ser a inércia, a luta, o prazer, o sacrifício, a esperança, a espera…
Pergunta difícil. Percorri mentalmente alguns autores e abri o livro que trago em mãos: Robert Musil; O homem sem qualidades: “No fundo, poucas pessoas saberão a meio da vida, como chegaram a ser o que são, aos seus prazeres, à sua visão do mundo, à sua mulher, ao seu carácter, à sua profissão e aos seus êxitos, mas sentem que a partir daí as coisas já não irão mudar muito."
Era preciso enviar um e-mail para sossegar quem esperava resposta. Era preciso dizer que esse tempo oferecido e não escolhido é o tempo da construção, da evolução do eu que não pediu para nascer e que, necessariamente, tem dias para experimentar, em sucessão contínua e sem ensaio. O bocado de tempo de que dispomos é semelhante à subida de uma imensa escadaria. Olhamos para ela e pensamos nos degraus, na ausência ou presença de corrimão, nos patamares por que passamos, nos estalidos das pernas e na respiração. O caminho começa lento, não ousamos correr sem permissão do corpo, subimos devagar, apoiados e seguros. Um dia, quando os músculos ficam fortes e as mãos já não buscam apoio, os degraus parecem mais fáceis, a agilidade ultrapassa o próprio corpo e vamos.
Vem o tempo da acalmia, as escadas ganham sentido, pensam-se os movimentos e a subida é um prazer tranquilo. Sem angústia, passamos pelo tempo com consciência. Chegar a saber, a meio da vida, o que se é, depende da forma como subimos a escada. A vida vem ter connosco, como dizia Musil mas a atenção é urgente, necessária e obrigatória. À menor distracção, ficaremos do lado da maioria, dos que não chegam a saber o que são nem como chegaram à vida que têm.
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