31.12.09

BOA NOITE


Parece que o ano está a acabar. Um dia vou entender o verdadeiro sentido disso. É o mesmo que acabar um dia, uma noite, um qualquer período de tempo em que se vive.
Feliz 2010.

MÃE



Mãe;
Vê a tradução do video. É para ti. Bom Ano minha rainha.

FILHA



Filha;
Deixo a música que te dedico. Sempre. Pratica o teu espanhol com as legendas :) Feliz 2010 minha princesa.

30.12.09

CAMINHO



Contente viagem de parágrafos. Dois anos.
É preciso dobrar o grito. Para que conste. Ainda que a ninguém.

29.12.09

A VALSINHA E AS SAUDADES


Por esta altura, entre as filhós do Natal e o Champanhe do Ano Novo, íamos sempre jantar fora. Perto um do outro, saudades do Brasil e dos amigos, dizias: "Os Brasileiros são Portugueses à solta". Depois erguias o copo de vinho tinto e punhas o sorriso infantil de sempre. Saudades, muitas saudades. Por tua causa, este blogue comemora dois anos de existência amanhã. Obrigada, mais uma vez.



Chico Buarque. Valsinha.

28.12.09

ACTUALIZAR

Passou, a longa lista de ligações, a pequena lista de essenciais. A modernice dos Feeds proporciona uma certa forma de limpeza visual.

26.12.09

I Won't Dance



Regressar a Lisboa. Verificar se tudo o que deixei continua alinhado.

25.12.09

DIA


Levantar tarde no Dia De Natal é o melhor presente que o Céu me envia.



I Dreamin of A White Christmas

24.12.09

FELIZ NATAL


Cheguei a um destino perto de mim. Agora estou ao pé das coisas quentes e das pessoas vivas.
Bom Natal para todos.



Robbie Williams Merry Christmas

23.12.09

Hoje vou-me embora. O Menino Jesus mandou dizer ao Pai Natal que me avisasse sobre as viagens perigosas. Recebi o recado e pus-me ao caminho.

22.12.09

Um dia, a mulher adormeceu em frente ao lume. Quando, de manhã, olhou as cinzas, pensou estar morta. Num lugar longínquo, perto de outros egos queimados e postos em jardins com relva.

21.12.09

Era uma vez uma mulher. Tinha tão imensa consciência de si que não conseguia olhar-se ao espelho com seriedade. Ficava-lhe amargo gosto a ego encarcerado. Na semana do Natal, enfeitava a casa com convicção. Depois sentava-se à lareira, à espera que as chamas consumissem a solidão.

18.12.09

Fim-de-semana em rampa de lançamento. Dedos quietos nas teclas do computador. Congelou-se-me a possibilidade de aglomerar letras. Estão todas no Centro Comercial, em sacos com estrelinhas e embrulhos com lacinhos.

17.12.09

Os dias, no mês de Dezembro, não são frios por causa da temperatura. São gélidos, por causa dos que os não vivem.

16.12.09

As noites, no mês de Dezembro, não são frias por causa da temperatura. São gélidas por causa dos que as não vêem.

15.12.09

14.12.09

PORQUE PARECE

Parece que estamos a caminhar para o fundo do poço. Parece que as contas públicas estão na lama. Parece que a dívida externa aumenta todos os dias. Parece que a educação vai de mal a pior. Parece que a saúde continua nas ruas da amargura. Parece que a taxa de desemprego evolui para números por demais escandalosos. Parece que as crianças continuam a ser maltratadas. Parece que as mulheres não têm os mesmos direitos dos homens. Parece que a violência doméstica alastra. Parece que os alunos continuam a desrespeitar professores. Parece que os pais se demitem e os filhos trepam. Parece que a vida Portuguesa é pequena. Parece que as adolescentes engravidam sem quererem. Parece que o dinheiro não chega. Parece que o mundo anda em guerra. Parece que todos ignoramos o que vemos e ouvimos. E as compras de Natal continuam...

13.12.09

Depois veio a mãe pôr água na fervura e dar beijinhos de compensação. Daqueles que sabem a falso.

12.12.09

O menino segurava o presente com tanta força que desabou em pranto, quando o pai lhe disse que não podia desembrulhá-lo ainda.

11.12.09

Lá vou eu ver se as botas novas podem ser compradas para o dia em que o Pai Natal anda ocupado e o Menino Jesus dorme até tarde.

10.12.09

A minha filha já viaja à frente. Parece uma pequena mulher com sonhos dos que se não comem. Na noite de Natal agarra no escuro com a esperança contida de o poder esmagar, junto à estrela do presépio.

9.12.09

A minha mãe costuma dizer-me que a vida é difícil. Tem razão. Na época do Natal lembro-me sempre das razões da minha mãe.

8.12.09

Ontem deitei-me com dores nas costas. Os sacos que não trouxe da loja fizeram-me lembrar os dias em que os carrego sem prazer.

7.12.09

Sentei-me num degrau. As mulheres carregam sacos e cansaço. O bacalhau está mais caro este ano. A consoada continua a ser penosa para elas.

6.12.09

O Pai Natal este ano está mais magro. Disse-me, outro dia, que andava cansado dos meninos que faziam birras.

5.12.09

O S. José também ficou na loja. Perto dos outros brinquedos que não interessam por não brilharem.

4.12.09

Há dias em que me sento no carro de frente para o povo que passa. Trazem as bolinhas na mão para colocar na Árvore de Natal. Esquecem-se sempre da Nossa Senhora.

3.12.09

Agora é aguentar tudo com calma. Pôr as mãos no colo e esperar que a embriaguez passe.

2.12.09

Ter de viver entre ocupadas cabeças e corpos em desassossego por estarem atrasados para as compras.

1.12.09

Começou o mês do Natal. A época das gentes em azáfama. Os dias de fila para a alienação. As noites com pacotes aglomerados perto de um Menino Jesus esquecido durante o ano inteiro e mal lembrado em Dezembro.

30.11.09

BOAS SENSAÇÕES


Helen Frankenthaler

Dormi muito. Tive a sensação de que o Natal já tinha passado.

28.11.09

LIMPEZA


Vou para a banheira para ver se a água me limpa contradições.

27.11.09

COISAS QUE A GENTE VIVE

As coisas que a gente vive ficam na carne cravadas. São frases e gestos e gostos e cores e corpo e alma e espera e grito e morte e canto e sono e tempo e espaço e gente e cheiro e tudo o que, aqui, se grava em forma de cravo enterrado bem dentro.

26.11.09

SABEDORIA BUDISTA


Helen Frankenthaler

"De acordo com a sabedoria de Buda, podemos na verdade utilizar as nossas vidas para nos prepararmos para a morte, sem precisarmos de esperar pelo falecimento doloroso de alguém que se encontre perto de nós, ou pelo choque de uma doença terminal para começarmos a olhar para as nossas próprias vidas."

O Livro Tibetano da Vida e da Morte; Sogyal Rinpoche

25.11.09

VERDADE

Era uma vez uma mulher que dizia sempre a verdade e era infeliz.

24.11.09

PERCURSOS



Continua no percurso pelas ruas de Lisboa. Gente nova com saudade e destino no corpo. Vozes. Escadinhas da Mouraria e a nostalgia do tempo em que ia aos fados de mão dada com o meu pai. Sentava-me à mesa e não entendia por que razão viajavam para ouvir a guitarra. Hoje espanto-me e arrepio-me. Coisas da idade que chega.

23.11.09

MAXIME




Hoje vou ao lugar das memórias. Ali perto do Parque Mayer, onde foste profissional atento, onde viveste acima do tempo e do espaço.

22.11.09

DOBRAS E GRITOS (38)

Casamento, união de facto, união sem ser de facto, contrato, consentimento, divisão de espaço e tempo, partilha de corpo e alma, troca de fluidos, mistura de afectos. Chamem-lhe o que quiserem, o que der mais jeito, o que for mais conveniente, o que ficar melhor na fotografia, o que convier aos dois, o que for aceite no registo civil mas… por favor, parem de meter o bedelho na vida pessoal e íntima de cidadãos que trabalham, pagam impostos e têm direitos. O estado não pode intrometer-se na cama das pessoas, a igreja não tem que opinar sobre a intimidade de cada um. Ainda não entendi por que razão o casamento entre pessoas do mesmo sexo é assunto. Legalizem o que há para legalizar. É a igualdade que está em causa. Esperam o quê?

21.11.09

MATILDE


Robert Doisneau

Vamos embora, Matilde. A mãe disse que precisava da nossa ajuda. Amanhã voltamos com as nossas rodas e os nossos anseios.

19.11.09

MATERIAIS DIVERSOS

"É um grito no topo da serra mas adora o silêncio dos espectáculos"

Festival de Artes Performativas que cruza espectáculos internacionais com espectáculos nacionais. A música é o fio condutor que os une. Tiago Guedes respondeu ao convite da Câmara Municipal de Alcanena. O Festival aí está, para começar hoje e continuar por 10 dias.



Em Minde, o espaço de tertúlia pós espectáculo, denuncia bela ideia e exótico sentido estético. Lugar para conversas com loiça preenchida de aroma e música. Tempo de encontro entre os que olham e os que expõem, expondo-se.
Convite aos afectos por causa da música. Ela é lugar de desejos. Sempre.

17.11.09

GENTE PEQUENA


Robert Doisneau

Lá vão eles, com os sonhos inteiros. Gente pequena à procura da vida que tarda em chegar. Nem a chuva impede percursos, nem o sol impede olhares. Gente pequena. Com o futuro todo no bolso.

16.11.09

SEM VIDRO


Roberto Doisneau

Esta semana encontro-me com veias artísticas. Sem vidro que separe pensamentos.

13.11.09

COISAS EFÉMERAS


Amadeo Modigliani

Abriu-se a porta da casa por detrás das árvores. Entraram como em todos os outros dias. Silenciosos. Os móveis continuavam à espera das pessoas. As pessoas tinham interrompido a espera. Coisas tontas e efémeras.

12.11.09

DEPOIS DA ESPERA


Amadeo Modigliani

Ele voltou depois. Quando a espera tinha acabado. Ela ficou quieta. Porque os músculos não responderam aos desejos e os desejos não responderam aos conhecimentos e os conhecimentos não responderam aos apelos e os apelos calaram, dentro de todos os músculos.

11.11.09

ESPERA


Amadeo Modigliani

Ela esperou por ele. Até ao dia em que percebeu que, esperas, travam conhecimentos.

10.11.09

O BERRO DA TIRA DE PANO


Amadeo Modigliani

A gravata berra de raiva. Porque ainda não disse nada que se ouvisse. Esperneia no pescoço de quem não a entende. Barafusta no corpo de quem a quer perfeita. Ela não quer ser perfeita. Não quer ser mais que tira de pano para engraxar sapatos.

9.11.09

VESTIDO


Amadeo Modigliani

Corpo vestido. Depois. Quando as mãos deixaram de encontrar nudez. Depois. Quando os pés pisaram chão coberto de afazeres.

8.11.09

ESPAÇO


Amadeo Modigliani

Espaço onde todas as células encontram contentamento.

7.11.09

MAIS POESIA


Amadeo Modigliani

- Aquele CD de jazz que compraste ontem?
- Está ali.
- Vai colocá-lo, por favor.
- Interrompes para isso?
- É necessário.
- Necessário?
- Absolutamente. Orgasmo com poesia!

5.11.09

BELA


Amadeo Modigliani

Preguiça bela. Quando os dias estão cheios de corpo.

3.11.09

FESTA EM DIA DE FINADOS


Era o dia do fim da quadragésima semana de gravidez:
- 2 De Novembro, doutor?
- Que tem?
- Não, por favor, se eu puder escolher, não quero que o bebé nasça no dia dos mortos.
- Mas que superstição é essa minha senhora?
- Eu não sou supersticiosa, até porque acho que isso dá azar, mas filho meu a nascer em dia de finados é que não.
- Julga que a criança vai ficar triste com isso?
- De forma nenhuma, doutor, só não quero passar o resto da vida entre festas de aniversário e visitas ao cemitério!!

2.11.09

MONÓLOGO JUNTO À MINA


António Eça de Queiroz

Um amigo do Norte, companheiro de palavras publicadas, cúmplice em almoços com gente gira, fez o favor de aceitar um convite: escrever na Dobra Do Grito, com pintura incluída. Obrigada, António.

Bom, vejo que finalmente a encontraste – um bocado à sorte, diga-se de passagem...E que vais fazer agora, pode-se saber? Ou não saberás ainda?...
Não sei, não. Realmente não sei. Pergunto-me se valerá a pena – aliás pergunto-me mesmo se algo vale a pena. Já pensei em fazer aqui uma horta e montar guarda.
Como um cão?!... Essa é boa! Andaste anos ao acaso das passagens em redor da entrada, fizeste cálculos de pêndulo e astrolábio, correste perigos, rugiste de ira no breve desalento, uivaste de alegria na falsa descoberta... E agora que te falta um passo, um único, não vais entrar?... Não te move sequer um pouco de curiosidade? – se esconde tesouros, ou até segredos caros ao universo? Se assim é para quê avançar tanto no caminho, tão cheio da segura insegurança que anima a alma dos aventureiros? Porque não fizeste logo a tua horta e por lá não te ficaste, junto aos teus amigos pássaros, à salsa e à hortelã? Ninguém te empurrou de lá para fora!...
Tive de facto curiosidade. E o acaso, dizem os que crêem, é uma das divinas manhas...
E agora...
É.
Enganaste-te outra vez, meu caro: não é.

António Eça de Queiroz

1.11.09

FESTIVAL


O Festival Materiais Diversos decorrerá de 19 e 29 de Novembro em Alcanena, Minde e Torres Novas.Com a direcção artística de Tiago Guedes, será um festival pluridisciplinar (dança, teatro, música e performance) e apresentará uma programação internacional, nacional e local.O coreógrafo Raimund Hoghe já confirmou a sua presença tal como Eszter Salamon, o Rancho do Covão do Coelho, Jonathan Burrows, Karine Decorne e Simon Proffit, Tânia Carvalho, Margarida Mestre, Filipa Francisco, Joana Barrios, Martim Pedroso, Cláudia Gaiolas que encenará o grupo de teatro Boca de Cena, Cão Solteiro e Vasco Araújo, Inês Jacques e Eduardo Raon com Xaral's Band!

O Festival Materiais Diversos é financiado pelo MC/DGArtes, pela Câmara Municipal de Alcanena e pela REN.
É um evento integrado no Ano Europeu da Criatividade e Inovação.

29.10.09

O DIA



O dia da enorme mudança. Hora de começar a ser mãe. Coisa grande e infinita que, para sempre, marca o corpo e tudo o que a alma tem. Feliz Aniversário, filha.


28.10.09

FALTA DE ASSUNTO


Já cá não está quem dizia, à mesa de um restaurante na Elias Garcia: "nada pior que a falta de assunto". Pois é. Com tanta coisa para escrever e pensar, há semanas em que o corpo impede o raciocínio. Vem uma preguiça mole e viscosa que atrofia os músculos e os neurónios. Depois, dá-se a triste realidade da busca de tema que não aparece. Não se vêem telejornais, os livros ficam fechados, os filmes adiam-se para mais tarde e toda a existência esbarra num abismo espiritual. Não fossem obrigações profissionais e a cama estaria ocupada todas as horas do dia.

25.10.09

DOCE IGNORÂNCIA


(Foto de Robert Doisneau)

Se eu não soubesse que ia morrer, se não houvesse contagem de tempo e se todos os dias fossem surpresa, hoje não saberia a minha idade, não teria conhecimento de que o processo de envelhecimento ia acontecer nem tinha a noção dos anos. Os dias sucediam-se às noites. Apenas. A vida poderia ser um perpétuo movimento marcado por instintos de sobrevivência e prazer. As pessoas viveriam em outro mundo, sem tempo contado, aceitando as rugas e os cabelos brancos com a doce indignação de uma ignorância distribuída pelo corpo todo.

24.10.09

VERDE


Foto de João Azevedo

Hoje festejam-se aniversários passados. O verde é a cor da noite e do dia. Como a eternidade dos perfumes postos depois do Tejo.

23.10.09

DO FUNDO DO MAR


Helen Frankenthaler

Vem à tona em dias de aniversário. Porque está vivo e é genuíno o desejo de dias bons. Sempre.

22.10.09

SUBSTÂNCIA


Kurt Schitters

Sempre que um ano passa olho para trás. Não para agarrar o que foi embora mas para entender o que há-de vir com maior substância.

21.10.09

"CHICO ESPERTISMO"


Foto de João Azevedo

José Gil volta a escrever sobre os Portugueses. A subjectividade perdida, os processos de subjectivação, a mais-valia do biopoder, a avaliação e a identidade. No capítulo sobre os processos de subjectivação, identifica, em Portugal, aquilo a que a linguagem popular chama o “Chico esperto”, a”esperteza saloia”, o “carapau de corrida”.

Refere o autor que o Chico espertismo é transversal a todas as classes, grupos, géneros e gerações. Desde o condutor que aproveita um espaço vago na fila e se precipita ultrapassando os outros para ganhar um ou dois lugares, até ao poderoso que aprova a lei porque lhe é conveniente. “O Chico espertismo por ser tão generalizado e penetrar tantos domínios, desliza facilmente para a corrupção e para a acção criminosa. Mas enquanto não chega aí, o Chico esperto goza do consenso conivente da maior parte da população, mesmo quando esta, publicamente o condena”.

O descaramento, a “lata” a que alguns sujeitos se apegam, a forma como o puto malandreco pega, à socapa, nos rebuçados que o pai proibiu de comer, denunciam postura típica de quem, desde cedo, perdoa a malandrice e ri da esperteza saloia do pequeno que, mais tarde, passará a perna aos outros. Que importância tem? É comum que um homem que se farta da namorada arranje o pretexto do “vamos dar um tempo” porque a verdade não é dita e é fácil o descarte. É o Chico esperto do amor, aquele que foge por via do engano e da finta amorosa.

A mentira, a aldrabice, a incapacidade de assumir responsabilidades, a dificuldade do Português em ser adulto, resvala, num ápice para o estatuto do aldrabão. O clima cada vez mais favorável ao Chico-espertismo português, explica a onda de corrupção que atravessa o nosso país. A relação do indivíduo português com a verdade de si só pode ser distorcida.

20.10.09

19.10.09

COMO MERECES


Tenho saudades tuas todos os dias. Vou lá, ao Museu do Teatro, ver se te encontro mais perto. Porque hoje era o dia dos teus anos. Almoço e café na esplanada, como mereces.

17.10.09

ÓLEO DE AMÊNDOAS

O banho foi quente. O óleo de amêndoas trazia a sensação transparente do veludo que permanecia no corpo até ao outro dia. Estendeu a toalha na varanda. Estava vento. Fechou a porta com força e saiu. O dia ia ficar bonito.

15.10.09

DEPOIS DE SALVADOR


Não recebia notícias de Salvador há alguns anos, agora a pergunta caia na saudade enterrada fazendo-a reaparecer. Com as mãos pousadas no telefone, hesitou responder, pensou ser melhor deixar o tempo dizer-lhe que o tinha esquecido. Levantou-se e foi lavar os dentes, limpar o rosto e colocar o creme de noite. Fechou o tampo da sanita e apagou as luzes do apartamento. Atravessou o corredor várias vezes, sacudiu os braços sem saber bem o que fazer. Pensou desligar o telemóvel, talvez pô-lo no silêncio. Em vez disso, escreveu: Amanhã às onze.

14.10.09

DEPOIS DO CIGARRO

Esticou todo o corpo para trás e sentiu um estalido na coluna, perto do pescoço. Rodou a cabeça devagar, para a direita e para a esquerda. Encostou-se no sofá e ouviu o piano que tocava ao longe, na aparelhagem antiga, herdada de um tempo acabado. Suspirou com garra e riu. Pousou as mãos no colo, em gesto de descanso e elevação. O telemóvel deu sinal de mensagem escrita. Olhou o pequeno monitor do aparelho e leu: Blind Date?

13.10.09

DEPOIS DO ORGASMO


Fez muitos nós pequeninos na linha que estava em cima da mesa. Enrolou-a nos dedos e brincou com ela durante longos minutos. Era o momento depois de liberta a libido, o instante em que os músculos distendem e os braços se esticam por cima da cabeça. Acendeu o isqueiro e começou a queimar a linha cheia de nós que tinha enrolado à mão esquerda. Em bolas pequenas e frágeis, ela ia encolhendo de cada vez que a chama lhe tocava. Restou uma só bolinha que caiu no cinzeiro. Luísa expirou o último sopro de cigarro e pensou: sozinha também me divirto.

12.10.09

DE VOLTA


Maurice Denis

De volta às coisas que eu gosto. Cidade e mesa tranquilas. Como nos contos do Eça.

11.10.09

SOBREVIVÊNCIA


Sobrevive-se a casamentos destes com grande sentido estético. Guardada na carteira pequena que leva os lenços, a máquina fotográfica dispara nos lugares não festivos. Para descontrair.

10.10.09

COISAS QUE ME INQUIETAM (17)


Estou num daqueles casamentos que dura, dura, dura. Os convidados não aguentam a duração e os noivos comem que nem desalmados antes da refeição principal. Absurdo.

7.10.09

ASSIM É QUE É BONITO


(Foto de Robert Doisneau)

Quando saíram do lugar dos anseios, perceberam que a vida não existe sem caminho. Em frente ao que não sabiam, os pés seguiam por ruas movediças. Porque o passado lhes permitia a crença de que eram felizes. Depois, quando a claridade chegou, fechou-se a porta dos sonhos e foram embora. Cada um seguiu ruas distintas. Porque assim é que é bonito.

6.10.09

CURTO DEPOIS



Passearam numa cidade perto da praia. Tinham viajado o tempo suficiente para entenderem a urgência de um beijo. Não sabiam que o depois era curto.

5.10.09

COISAS BONITAS E MORTAS


(Foto André Kertész)

Há 18 anos houve um casamento. A terra pequena acolheu o noivo que vinha de fora. A noiva estava à espera, numa igreja bonita, com um vestido bonito, convidados bonitos e flores bonitas. Naquele dia ninguém sabia que a beleza é efémera. Depois foram embora, num carro bonito, com sentimentos bonitos e esperanças bonitas. E a beleza acabou, quando todos perceberam a inquietude que suscitam as profundas convicções.

3.10.09

A PROPÓSITO DE MONÓLOGOS


Fernand Léger

A propósito do post anterior, diria que monólogos são conversas que, de solitárias só têm o nome. Olhamos para o eu de frente, por entre as janelas. Se fechadas, as palavras devolvem o medo. Quando abertas, soltam-se em bandos que voam para fora, como se nunca tivessem sido nossas.

2.10.09

MONÓLOGO DA VAGINA EMBRIAGADA


Fernand Léger

Uma mulher bonita e elegante sai de um bar com uma enorme bebedeira.
Caminha em direcção do seu automóvel, um BMW novíssimo e, com a chave, tenta abrir a porta mas o seu estado alcoólico não o permite.
Quando se baixa um pouco para se aproximar da fechadura acaba por cair e ficar sentada de pernas abertas ao lado da porta.
Desesperada com a situação, olha para baixo e reparando que não tem cuecas começa a falar com a sua própria vagina:
- Tu pagaste o carro... tu pagaste as jóias... tu dás-me tanto dinheiro.... tu permites que escolha o homem que me apetecer...tu pagas a casa que comprei... tu...
De repente começa a fazer xixi e diz:
- Não precisas de chorar que eu não estou zangada contigo!

30.9.09

TESTE DO BALÃO DEPOIS DE ALMODÔVAR


(Foto de Jet)

Passava das duas horas da manhã. O carro ia com ela, devagar, sem drogas e sem álcool. As luzes acenderam-se ao fundo da rua, antes de entrar no túnel da João XXI. Um senhor fardado com uma espécie de pirilampo na mão acenou para que encostasse. Ficou nervosa:
- Boa noite, os documentos da viatura por favor.
- Com certeza.
Entregou-lhos com um sorriso e apagou o cigarro no cinzeiro, não fosse ser multada por poluir a cidade.
- Bilhete de identidade, por favor.
- Com certeza, mas olhe que é fotocópia.
- Fotocópia? Porquê?
- Queria ter apenas fotocópias comigo por causa dos assaltos, mas parece que é ilegal.
- Não, não é, desde que autenticadas.
Rodopiou em volta do carro e sorriu:
- Alguma vez fez o teste do álcool?
- Nunca.
- Bebeu?
- Não, acabei apenas de consumir o último filme do Almodôvar, não sei se isso acusará alguma coisa.
Fingiu não ter entendido, ou não entendeu mesmo. Levou-a para junto de mais dois polícias com ar porreiro e mandou soprar no tubinho transparente. Zero.
- Afinal, o consumo de filmes do Almodôvar não acusa na máquina.
- Pelos vistos não.
Entregou-lhe os documentos e desejou noite feliz.
Chegou a casa sem entender se o polícia lhe sorria por causa da fotocópia do bilhete de identidade ou por razões de incultura cinéfila.

29.9.09

COISAS QUE ME INQUIETAM (15)

Não saber quem vai mandar na minha vida profissional. Ficar em ausência durante semanas, com os papéis na mão e as pastas por arquivar. Permanecer num limbo que, deixando de existir, permitirá o avanço ou o recuo.

28.9.09

NADA FÁCIL


Foto de João Azevedo

Não está fácil gerir este blog. As publicações diárias têm saído a ferros. Não sei se por causa de mim se por motivos profissionais densos. De qualquer forma existo. É o que me vale.

27.9.09

NÃO HÁ QUEM AGUENTE

Então agora que eu ia votar e descansar dos dias de campanha que me deixaram exaurida e com sensação de entupimento intelectual, dizem-me que amanhã começa nova campanha para as autárquicas? Mas há alguém que aguente? Vou desligar a televisão da ficha até dia 10 de Outubro. Apre!!

ALTIVEZ DE PLÁSTICO


Helen Frankenthaler

Sempre constatei que, para as meninas dos guichets de hospital, vestir bata branca entranhava sentido de poder e domínio. Sem formação que alicerce um bom atendimento ao público, assumem postura de uma qualquer parola “poderosa” que, na posse do tempo alheio, debitam frases de alto como “vai ter que aguardar”.
Sem quererem dizer quanto tempo vamos ter que esperar, a altiva postura adensa-se por trás dos óculos de marca bem visível, não vá o doente ou cliente do consultório pensar que a menina de bata branca não tem carteira recheada de euros. Os que, à mercê de quem não sabe gerir o tempo, se sentam a olhar para o ponteiro das horas, ali ficam, entre a estupidez escondida na caneta que usam e a altivez patente em cada frase que ditam, de cabeça baixa.

26.9.09

DOBRAS E GRITOS (37)

Profissionais na era da tecnologia, em pleno século XXI fogem a sete pés do correio electrónico. Parecem enguias a esbarrar por entre água turva, com medo que o e-mail infeste a sua identidade.
No meio de semelhantes gentes, quem quer vingar por via de uma comunicação rápida, eficaz e sem ruído, passa por controlador maléfico e manipulador execrável.
Põem Magalhães nas mãos de criancinhas que, mais não fazem, que jogar super tux e depois, as mães e os pais das ditas, resvalam na falsa ignorância informática para que a incompetência não fique registada nas páginas do correio electrónico. Cambada de retrógrados que ainda não aprenderam nem a usar a Internet nem a perceber que pode, a mesma, facilitar o trabalho e o tempo a quem já não o tem.

25.9.09

SEM EXPERIÊNCIA


João Cutileiro


No dia em que foi mãe, percebeu que o medo que não viu no rio tinha fugido. Para perto das mulheres sem experiência.

24.9.09

O MEDO NO RIO


João Cutileiro

No dia em que soube que estava grávida, foi sozinha para perto do rio. Julgava que podia ver o medo reflectido na água.

23.9.09

PASTA CASTANHA


Marcel Duchamp

Era uma vez uma professora morena. Tinha uma pasta de cabedal castanho e usava sapatos da mesma cor. O cabelo preto denunciava, pelo penteado certo, a previsibilidade dos gestos. As palavras, estudadas com detalhe, nada de novo traziam à sala. Porque a vida daquela pasta e daqueles cabelos era igual, desde o dia em que o mundo se lhe apresentara como monótono.

22.9.09

BODAS DE PRATA


Marcel Duchamp

Divorciado há 25 anos, pensou ser importante brindar a uma data que não chegou a existir. As bodas de prata de um casamento há muito acabado.

21.9.09

ESPUMA AMARELA


Marcel Duchamp


Todos os dias de manhã, enquanto fuma o cigarro e bebe o café, olha pela janela. Vê pessoas ausentes numa subida íngreme que dá acesso ao barracão procurado pelos que fazem do tráfico e do consumo, modo de vida. Depois, o homem encosta-se à parede e urina, em espalhafatoso banho de espuma amarela!

19.9.09

TONTURA


Juan Muñoz

Assim não vamos lá, amigo. Fica com as tuas palavras que eu fico com as minhas pessoas. Podemos rir os dois mas, só eu permaneço na tontura das ideias alheias.

18.9.09

A INTELIGÊNCIA DO RICARDO


Juan Muñoz

Não fosse Ricardo Araújo Pereira tão inteligente e, julgo, a beleza do comediante restaria na cave de um edifício soberbamente construído.

17.9.09

PERMISSÃO


Juan Muñoz

Sentaram-se. O cansaço do corpo pedia. Apesar de nada poder ser como devia, a paragem do riso era permitida.

16.9.09

POSSIBILIDADE DE RIR


Juan Muñoz

Eles estavam contentes. Apesar do tédio da campanha eleitoral, do marasmo das entrevistas e da conversa repetitiva, agora tinham, no programa do Gato Fedorento, possibilidade de rir, mesmo que as caras fossem iguais.

14.9.09

QUIMERAS SIM, SEXO NÃO


Paul Klee

Como um camponês que se dedica ao seu trabalho o ano inteiro, Kant não tinha férias. Criado no seio de uma família numerosa e modesta, o seu estatuto de intelectual era já um triunfo. Queriam que ele viajasse e que se casasse. A sexualidade de Kant intrigava os seus contemporâneos. Face à pergunta: “terá alguma criada de quarto gozado dos favores do filósofo?” Kant nem se dignou responder.
Melancólico e alucinado, com um regime de vida obsessivo e patológico, afirmava: “deixem-me com as minhas quimeras, são elas que garantem a minha sobrevivência”.
Sabe-se do seu celibato. Nunca ninguém entendeu se ele manteve a castidade. A certeza é a de que conhecia a sensualidade porque apreciava comida.

13.9.09

ETERNAS MELODIAS



Há melodias que nunca foram início de programa. Ficam aqui. Para lá do tempo, há a permanência no espaço, seja ele qual for.

12.9.09

"UM VAZIO NO TEMPO"


"Numa das últimas vezes que estive na Expo em Lisboa, descobri estranhamente, uma pequena sala completamente despojada, apenas com meia dúzia de bancos corridos. Nada mais tinha. Não existia qualquer sinal religioso e por essa razão pensei que tinha descoberto, que aquele espaço se tratava de um templo grandioso.
Quase como um espanto, senti uma sensação que nunca sentira antes e, de repente, uma enorme vontade de rezar não sei a quê ou a quem. Fechei os olhos, apertei as mãos, entrelacei os dedos e comecei a sentir uma emoção rara, um silêncio absoluto e tudo o que pensava, só poderia ser trazido por um Deus que ali deveria viver e que me ia envolvendo no meu corpo amolecido. O meu pensamento aquietou-se naquele pasmo deslumbrante, naquela serenidade, naquela paz.
Quando os meus olhos se abriram, aquele meu Deus tinha desaparecido em qualquer canto que só ele conhece, um canto que nunca ninguém conheceu e quando saí daquela porta, corri para a beira do Tejo para dar um berro de gratidão com a minha alma e sorri para o Universo.
Aquela virgula no tempo, foi o mais belo minuto de silêncio que iluminou a minha vida, que me fez reencontrar, e me deu a esperança, que num tempo, que seja breve, me volte a acontecer.
Que esse meu Deus assim queira."

Raúl Solnado

CEDO E DEVAGAR


Sairá de casa cedo. Para perto de quem amou com a alma cheia de riso e o corpo parado às palavras e às mãos. De quem sabia entregar a sabedoria inteira. A paz ficará com quem a disse. Sempre.

10.9.09

QUE IMPORTA?


(Foto de Robert Doisneau)

Se a vida fosse muito curta, se tivéssemos tempo contado para estar com as pessoas e num espaço de eleição, o medo desaparecia, a raiva não existia e a morte era aceite com naturalidade. Depois ninguém se lembrava de nós mas… que importa?

9.9.09

FELIZ ANIVERSÁRIO

Um ano de excelência. Parabéns ao PNet Literatura.

HÁ VIZINHOS ASSIM



Um simpático vizinho que se dedica à pintura. A troca de impressões sobre os livros e a vida, numa mesa de café perto de casa, levaram à publicação de um dos seus muitos trabalhos. Ali em cima, num andar alto de onde se avista a torre da igreja e o sino que bate as badaladas em compasso. Obrigada, vizinho!

8.9.09

ASSIM NÃO DÁ


José Gil já o tinha escrito. Sobre os Portugueses, o medo, a identidade perdida e uma certa forma de agir que, mais não é que reflexo da história mal resolvida.
O filósofo volta a escrever sobre os portugueses e o modo como o governo manipula a consciência colectiva.

O Chico espertismo típico de um povo que prefere contornar a lei a tomá-la como regra de conduta. Um povo que escolhe furar o sistema a impor-se, quando a necessidade de afirmação se deveria sobrepor à maquinação nojenta debaixo da engrenagem, sem ninguém ver. A história velha de que o problema não é roubar, é ser apanhado. Não soubemos gerir a revolução e, em vez de um “homem novo”, nasceu um homem que anda para trás, como se preferisse o autoritarismo à individual responsabilização.

Aqui, José Gil fala da educação, como mais ninguém o fez. Quando a afectividade é castrada no processo de ensino/aprendizagem, tudo está perdido. O Chico espertismo entrou na escola. Não interessa saber, interessa o diploma. Nada mais a declarar!

7.9.09

O QUE É QUE EU FAÇO COM A SAUDADE


O sentimento que rói cá dentro é muitas vezes sentido como provisório, uma espécie de bicho que entra para nos atormentar as entranhas. Vagueia por onde quer, passeia pela alma e corrói o corpo devagar. A saudade de um cheiro, de uma casa, de uma cama, de um lugar bonito, de um objecto, de uma viagem. A saudade do que se vive e não mais se encontra. Os lugares podem ser revisitados, mesmo quando o jardim já se transformou em prédio. Podem refazer-se viagens e a procura de cheiros de infância é possível, quando queremos encontrá-los lá, onde há muitos anos deixamos cair a bola pela ravina ou a boneca se estragou nas escadas estreitas de um corpo pequeno debruçado na sensação de brancura.



Quando a saudade é infinita, o bicho deambulará na alma até que o corpo desapareça. A saudade definitiva, fatal, irreversível. A saudade dos que morrem, daqueles a quem não podemos voltar a telefonar para dizer que estamos bem, os que não podemos voltar a abraçar, oferecer bombons para o café depois do almoço. A saudade incontornável, fora do tempo, de controlo e de escolha, para lá do que podemos revisitar, rever, voltar a ir, a estúpida sensação de impotência, o imbecil vazio que nos enche de raiva e de grito.


Já não posso beijar, já ninguém atende o telefone, já não posso rir e dar as mãos, dizer que gosto muito, enviar e-mails, conversar, tirar uma foto à socapa, enquanto arrumas os talheres depois da refeição. Já não posso vestir a tua camisa de flanela quando está frio, ver-te abrir a porta com um sorriso, pedir-te opinião, ajudar-te a procurar os óculos no escuro do cinema.


Agora a saudade é a sério, sem transitoriedade, vivida dentro, com o bicho a roer as entranhas de cada vez que lembro tudo o que eras. Agora já não existem mãos para agarrar. Os lugares estão lá, como quando os ocupávamos. Os cheiros recordam-se em tempo e espaço semelhantes aos que tínhamos. Os objectos perduram, enquanto nós quisermos olhá-los.


Os que morrem só voltam em momentos de riso e de lágrimas, como que a lembrar-nos que, apesar da ausência, permanecem numa saudade que ainda não aprendemos a ter como eterna companheira.


Talvez essa coisa triste que aperta a alma contra as costas seja aquilo que mandam os ausentes para nos ensinarem a lembrança.

5.9.09

SPENCER TUNICK


Desde 1992 que Spencer Tunick documenta a nudez das multidões. As suas instalações consistem de dezenas ou mesmo centenas de figurantes voluntários que posam em locais públicos. A massa de indivíduos sem roupa, agrupados num qualquer cenário, dá-lhes um significado completamente diferente. Segundo o autor, esse grupo de pessoas torna-se uma abstracção que desafia e reconfigura a nossa visão da nudez e da própria privacidade.
Spencer Tunick (Middeltown, 1967) é um fotógrafo americano, conhecido por este tipo de fotografia. Como curiosidade, refira-se que em 2005 foi detido pela polícia de Nova Iorque quando fotografava uma modelo que posava nua perto de uma árvore de Natal no Rockfeller Center.


4.9.09

DOBRAS E GRITOS (36)


Quando os dias começam a restaurar rotinas perdidas, vem a saudade de encontrar a casa que não voltarei a ver.

3.9.09

SENTADA NAS ESCADAS


Brancusi

Estava sentada nas escadas que dão acesso ao centro comercial. A perna esquerda esticada até ao passeio e a mão estendida. Olhava nos olhos de quem lhe punha uma moeda na mão. Todos os que paravam tinham direito a um sorriso e três palavras: “Deus o abençoe”.
A mulher devia ter mais de setenta anos, vestia roupa limpa e muito usada. As meias tinham borbotos antigos. Trazia consigo um pequeno livro que denunciava uma doença: diabetes.

Depois de muitos passarem sem olhar, o homem atravessou a rua e sentou-se ao lado da mulher sozinha. Cumprimentou-a e ficou a conversar.
- De que precisa?
- De paz, meu senhor, de paz.
- Mas não pede paz a quem passa, pede dinheiro.
- Peço dinheiro para que o meu estômago possa ter paz. A reforma não me chega para pagar todas as contas, preciso de pedir para comer. E a paz não se pede a ninguém, busca-se com muita firmeza.
- Já a encontrou?
- Quem?
- A paz de que precisa.
- Não consigo. Ando nesta vida sem paz nenhuma, meu senhor.
- Quer contar-me?
- Tenho três filhos que não me ajudam e uma neta que me impedem de ver.
Começou a chorar sem medida. As lágrimas surgiram para calar as palavras que já não pronunciava com clareza.

O homem ficou sentado ao lado da velha mulher, traçou as pernas e ofereceu-lhe o lanche. Desembrulhou um pão e foi buscar dois pacotinhos de sumo. Ficaram longos minutos a conversar.

Ouvi a mulher a sorrir enquanto partilhava o lanche, vi o senhor a entregar-lhe o número de telemóvel e a morada de uma instituição de apoio aos sem abrigo, vi os dois a trocar experiências e afectos.
- Sabe uma coisa meu senhor?
- Diga.
- Nós não somos nada, nós estamos na vida de passagem e não entendemos isso.
- Porque diz isso?
- Porque eu também não entendi. Foi preciso chegar a isto para abrir os olhos e agora é tarde demais.
- Nunca é tarde.
- É, meu senhor, é.

2.9.09

AO LADO DO BALNEÁRIO


Helen Frankenthaler

Encostou a cabeça e fechou os olhos. O jacuzzi estava vazio. Relaxou todos os músculos e manteve os olhos bem dentro de si. Não se ouvia mais que água, bolhas que lhe iam percorrendo o corpo. Continuou quieta com as costas em frente ao jacto mais forte. Parou o gesto. Lembrou as senhoras e os senhores que se reuniam no meio dos cacifos do balneário, os que tinham toalha branca enrolada ao corpo e falavam muito. Lembrou-se das conversas sobre textos e livros e deixou-se ficar, a mastigar todas as sílabas que não eram suas.

O apetite das recordações era sempre o maior apetite. Das senhoras recordava o riso, a elegância no trato, a inteligência. Dos senhores, mantinha viva a memória do charme, o raciocínio pronto e a ironia. Queria, um dia, juntar-se à mesa do balneário misto, intrometer-se, ouvir e falar, dizer e escrever. Iria propor às senhoras temas sobre o feminino da existência, a eles declararia guerra, postura assertiva nas palavras com testosterona. Iria dizer a todos que os lia, que queria continuar a lê-los.

Abriu os olhos por entre as bolhas grossas de água que se espalhavam na gigante banheira. O Jacuzzi já não estava vazio, todos os que antes eram memória tinham entrado no mesmo lugar de onde, agora, ela saia envergonhada.

1.9.09

BALNEÁRIO MISTO


Num balneário de Lisboa, homens e mulheres estão para conversar, depois do treino intenso, da música batida, dos corpos em desassossego, dos gritos com as palmas, do step subido, do step descido. A alegria espalha-se pelas janelas que dão acesso ao jardim no meio da cidade.


As mulheres entram com toalhas enroladas na cabeça e no corpo, os homens usam-nas para atar à cintura, depois do duche. Há música e aquecimento, risos e cremes, cheiros e pés descalços, cabelos e braços que se secam do estar transpirado.

No centro de um corredor de cacifos, os corpos treinados recostam-se em poltronas de pele falsa. Laranja em sumo, amêndoas sem casca, queijos diversos, canetas, papel e livros. Todos se olham para entender o sexo das palavras, escrevem enquanto sílabas entram numa espécie de corrida literária. Eles têm o prazer do dito, elas desenham o escrito, depois de goles de sumo espesso.

Em intenção escrita é posto o sentido, o que se materializa dentro de cada gesto.
As palavras têm o masculino e o feminino, como as pessoas. As palavras desenham-se com as mãos, intensificam-se no diálogo.

Em balneário misto há gente que treina ideias, pessoas que ajustam as letras ao seu significado, há o treino do estar pouco quieto, do estar para escrever. Depois cria-se o texto, o que antes era pó e solidifica em folha.

Sabem todos que palavras não vivem sem gente, nelas, o sexo define-se pelo desenho na frase. Sabem todos que palavras são bocados de pessoas num balneário aberto ao que se escreve em formato diverso, conforme são diversas as formas de traçar a perna, quando os corpos se sentam.

30.8.09

VIVER



Viajar me deixa tenso antes de embarcar,
mas depois rejuvenesço uns cinco anos.

Viagens aéreas não me incham as pernas;
incham-me o cérebro, volto cheio de ideias.

Luis Fernando Veríssimo.

17.8.09

VAZIO DE AGOSTO


"Deus nunca nos pisca o olho para nos avisar quando devemos abandonar o palco."
Raúl Solnado

Acabou o riso com corpo, nunca o que guardo na alma, a que muitas vezes desenhaste com gestos.
Muito Obrigada, Raúl.


Mikkel Solnado

25.7.09

FIM DE UM CICLO


Férias. Novo ciclo. Publicações datadas, biografias, autores catalogados e postos em arquivo. Tudo ficará na memória. A seguir, tudo será disperso. Novas formas entrarão na Dobra Do Grito. Depois de um ano e meio de método, outras regras.
Até Setembro.

PASSADO (1)


Tapiés

Tinha, na velha secretária, memórias rendidas. Esqueceu-se de abrir as gavetas a tempo e... as recordações morreram cedo.

24.7.09

PASSADO


Tapiés

Havia, na terra onde nasci, uma senhora gorda. Guardava as tardes de sol para estar sentada. Cruzava as pernas gordas em cima de uma cadeira estreita. Colocava o rabo gordo dentro de um sofá muito velho e espirrava como se nada mais a incomodasse.

23.7.09

OS LIVROS QUE NÃO LI


Tapiés

No tempo em que eu achava que o tempo não tinha importância, vivia numa terra pequena de ruas estreitas de calçada gasta e casas baixinhas pintadas de branco. Brincava na rua com as vizinhas e ia para a escola a pé, com os livros de Aritmética cheios de correcções e os imaculados livros de Português. Acreditava que a leitura era apenas tarefa de escola. Não havia mais que uma dúzia de livros na estante lá de casa e todos muito grandes para que lhes pegasse. Os dias passavam ao lado dos hábitos das letras porque, depois da escola, as bonecas ocupavam o espaço de um quarto branco com cama de ferro cor-de-rosa velho. A minha mãe contava-me que tinha lido muito enquanto jovem e o meu pai ausentava-se de conversas sobre letras em papéis.

Cresci com poucos livros. A adolescência trouxe a curiosidade pelas letras e a colecção dos Cinco e dos Sete sucedeu a alguns volumes da Anita oferecidos na infância. As aulas de Português faziam as delícias de uma adolescente tímida que usava as composições para espalhar o desencanto ou o entusiasmo. Descobri Eça de Queirós e li os Contos; O Primo Basílio, Os Maias, A Relíquia.

A minha mãe comprava os livros quando vínhamos a Lisboa ao médico ou à Revista no Parque Mayer. Comecei a entender a leitura como tarefa quotidiana nos anos que antecederam a faculdade. Os grandes clássicos da literatura foram ficando para os dias em que, a viver em Lisboa, me debruçava no balcão de madeira da Livraria Portugal e espreitava as estantes por trás do empregado.
A faculdade foi tempo de novas descobertas. Lisboa começava a ser a minha cidade e, com ela, novos livros no quarto de um apartamento em Benfica.

A ternura de uma infância feliz mas distante dos livros fez com que entendesse, mais tarde, a razão de ser de muitas e belas existências. A leitura como aprendizagem e actividade diárias foi, na minha vida, acontecendo ao sabor de vivências e necessidades. Não fui educada com volumes à cabeceira, não cresci numa casa com biblioteca, não vivi encantamentos literários até aos dezoito anos. Mau por um lado, bom por outro. Mau porque adiei prazeres, bom porque adiei inquietações.
Hoje, depois de entender que o tempo tem importância, entendo também a importância da leitura na vida. Muito melhor não adiar inquietações, o prazer de ler supera-as. Sempre.

22.7.09

DEPOIS


Tapiés

Depois da luta. Depois dos livros. Depois do trânsito. Depois das obras. Depois do pó. Depois do ruído. Depois... foi-se embora para quase perto de si.