24.10.11

Diário de Etelvina (05)

No dia em que Etelvina explicou às senhoras da sala 33 que era preciso existirem regras em cima das pernas, elas sentaram-se e puseram os pés para o ar.  Etelvina explicou à Dra. Guilhermina Guilherme que era difícil encontrar equilíbrio do piso 3. Ela respondeu-lhe com a madeixa em cima da testa e a ruga em cima da mesa:
- Difícil? Não se lembra que estas mulheres têm que ser postas na ordem?
- Lembro.
- Nada de confianças.
Etelvina saiu do gabinete com as palavras da chefe enroladas no papel de jornal. Deitou-as para o caixote do lixo e descansou nas escadas. A D. Manuela espreitou à porta da sala 33:
- D. Etelvina. Acordei. Posso fazer-lhe uma pergunta?
- Claro.
- Por que razão não gosta de serpentes?
- Porque rastejam, deitam a língua de fora e podem matar.
- E não há pessoas assim?
- Há. Mas as pessoas não rastejam.
- A sério? Eu não teria tanta certeza!


20.10.11

À tona

Além de tudo o que está a acontecer aos portugueses, há uma doença que mina as mentes e os corpos e que, face a preocupações externas, não é visível. Cuidado. Os anti-depressivos têm baixa comparticipação do estado. Os psiquiatras são caríssimos. Há doenças crónicas que comprometem o próprio e as famílias. Cuidado. Vamos estar atentos ao que se passa fora, sim senhor. E dentro? Parece-me tão ou mais importante. Vou procurar químicos ou manter-me à tona?

19.10.11

Divã

Agora estou cansada e preciso que me digam por que razão tenho a mania de explicar. Manias podem ser doenças, neuroses, obsessões ou recalcamentos. Vou-me deitar no divã e já volto.

18.10.11

Dono da mota

Agora vou ali explicar ao dono da mota que não é preciso fazer muito barulho para que os outros entendam que ele tem problemas de identidade e afirmação.

17.10.11

Médico

Agora vou ali explicar ao médico que nem a autoridade está na ponta do estetoscópio, nem a eficácia está na rapidez da consulta.

16.10.11

Polícia

Agora vou ali explicar ao polícia que, polícias competentes, não gritam nem intimidam transeuntes distraídos.

15.10.11

Professora

Agora vou ali explicar à professora que, professoras que exercem e professoras que já o não são, devem ter atenção ao rigor de linguagem em toda a parte.

14.10.11

Menina da livraria

Agora vou ali explicar à menina da livraria que, profissionais que lidam com gente devem ser profissionais educados e atenciosos.

10.10.11

SEMANAS ASSIM

Tempo cheio de lugares e pessoas e horas e coisas. Semana com muito conteúdo e muita forma. Quadrada. Semana de ideias e desejos e esperas. Semana sem blogue e sem ócio. Há semanas assim.

7.10.11

Diário de Etelvina (04)

Era cedo. Etelvina chegou à sala 33 e viu que Manuela dormia. Inclinada sobre uma mesa de madeira quadrada, parecia sonhar com serpentes. Mexia a boca e as pálpebras. As outras mulheres riam. 
Etelvina inclinou o corpo e cantou uma canção de embalar. Manuela não acordou. Sentou-se de frente para o grupo e disse que contaria uma história.
As mulheres escolheram um lugar para ouvir. Etelvina disse-lhes: sempre que uma mulher adormece, o resto do mundo não dá conta. O sono alheio não interessa a terceiros porque terceiros estão longe e não sabem. É por isso que o sono é pertença de um, a vigília é pertença de muitos e a loucura é pertença de todos. 


4.10.11

CORRER PARA AGIR

No instante em que se engolem palavras que supomos serem lúcidas, no preciso momento que acordamos para sentir que há verdades muito mais perto do que imaginávamos, apetece correr depressa para agir com urgência.

3.10.11

Diário de Etelvina (03)

Depois de conhecer as mulheres da sala 33 percebeu que a criatividade tinha que ser usada, ou melhor, descoberta. Etelvina ficou confusa. Ouviu as histórias das doentes, sentou-se no colo de uma que estava convencida poder ser a mãe dela, pegou na mão de outra que pensava andar perdida numa floresta e acalmou a que chorava muito sem saber explicar porquê. Depois olhou para todas e disse:
- Eu vou impor regras.
- O que é isso? – perguntou a mulher que chuchava no dedo.
- São normas de comportamento.
- O quê?
- Aquilo que vocês não têm e precisam começar a ter.
- Está a falar do juízo?
- Também.
- Sabe uma coisa, D. Etelvina? O juízo é aquilo que todos dizem que têm e ninguém prova ter.
- Por que razão diz isso?
- Porque conheço as palavras mas nunca vi os actos.
- E você, Manuela, tem juízo?
- Tenho tanto juízo que me deixo estar aqui à espera que alguém venha para me avisar que estou boa.
- E depois?
- Depois finjo que acredito e vou à minha vida, juntar-me a todos os outros fingidores.