14.12.10

A MERCEARIA DO MEU PASSADO

A minha avó Ana era uma mulher marcada por recordações difíceis. A mercearia no centro da vila era um mundo de sabores improváveis. Aspecto duro e magro, vestida de preto e com o cabelo apanhado em carrapito branco luzidio, tinha o amor escondido debaixo do colchão porque a vida lhe ensinara a não o oferecer todo de uma vez.

A minha avó Ana tinha os olhos postos num tempo que já não existia. Vivera-o duramente e queria, todos os dias, escondê-lo dos filhos e dos netos. Pegava na vida com os dois braços e não desistia dela, nem por um segundo.



De manhã, abria as portas altas de madeira grossa e escrevia no livro dos calotes, as contas em atraso. Os fregueses agradeciam-lhe a tolerância e a bondade. Numa das prateleiras do balcão guardava o papel pardo e a caixa dos escudos para fazer os trocos. Nunca me pediu ajuda, a falta de jeito para contas era tão nítida que preferia oferecer-me um bombom enrolado em papel dourado e tão redondo quanto o gesto. Eu sabia que o chocolate era meu, estava dentro de um frasco grande na prateleira mais alta da loja. Em bicos de pés, colocava o dedo pequeno no vidro para escolher a cor do papel que, desembrulhado, me daria todo o sabor.



Mulher firme. A mercearia era o seu sustento e o deleite dos netos que lhe pediam apenas o que ela podia dar. Conheciam-lhe a firmeza dos hábitos: um para cada um – dizia - e estava arrumado o desejo. Lembro-me da canja que fazia depois de depenar as galinhas que guardava no quintal. O fogão em cima da chaminé alta fazia com que cozinhasse como quem espreita. O carrapito branco que compunha enquanto nos dava um beijo era a imagem de uma mulher pouco preocupada com a estética. Encerava a casa com a energia que ia buscar aos afectos reprimidos, e o chão que luzia debaixo dos nossos pés era o reflexo de tudo o que não podia oferecer mas que, ali, se mantinha visível e sem palavras. Julgo que as palavras incomodavam a minha avó Ana.



Acredito que a mulher que guardou o amor debaixo do colchão o fez por saber que, esbanjando-o, correria riscos. Não quis. Viveu a vida oferecendo bombons e anotando adiamentos no livro da bondade.

3 comentários:

-pirata-vermelho- disse...

A recordação da avó Ana é comovente; sente-se.
A minha avó Elvira era diferente e sem a evocar extensivamente recordo como me declarou bolchevista aos dez ou onze anos de idade.
Quando tinha oito ou nove, declarou que tinha ideias avançadas, eu; era da Beira Alta, ela.

Algumas avós ficam mais que os avôs, não ficam?

Dobra disse...

Ficam... talvez porque o pilar que a família ajuda a sustentar e que permanece sempre se vive no feminino. Os avôs têm outras coisas, igualmente importantes.

Anónimo disse...

E eu gostava de ler mais sobre a avó Ana...
Posso sempre imaginá-la, mas gostava que a revelasses - ainda - mais.
Ela merece e os leitores também! ;)
Tens o condão de nos deixar com "água na boca".

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