(Paula Rego)
Vestir roupa velha nos finais de tarde que convidam a permanecer em casa, é como degustar um prato suculento em horas de apetite desmedido. A experiência de ficar despojada de tudo o que não tem aspereza, finura nova, textura hirta, é comparável à sensação de nudez do mundo.
Fecha-se a porta ao mesmo tempo que se desnudam pés, se solta o cabelo e se abre o chuveiro de água tépida. Resta a fruição, o gosto, o prazer completo.
A música ao fundo do corredor acompanha os passos molhados num soalho vadio, gasto e escuro. Escolhe-se, sem cuidado, a roupa que é eleição de horas vazias. O corpo aconchega-se ao cheiro dos dias que passaram pela vida de uma blusa que não tem preço. Braços escorregam pelas mangas de algodão e, por segundos, sente-se a história de uma peça quase inútil.
Distribuir passos pela casa com trapos velhos, é ter na alma o corpo inteiro, decidir num instante prolongado aquilo que não é mais do que silêncio. Roupa velha. Roupa triste e gasta, feia, descolorada e comprometida com quem a acolhe.
Quando os finais dos dias convidam a permanecer dentro de um mundo cheio de eus, a roupa que outrora serviu para mostrar o corpo cheio de outros é, agora, o trapo que diz as ideias bem dispostas de quem já saiu de cena, viveu infernos de frio e quente, ouviu palavras desajustadas e voltou à jazida do que é quieto.
Cai a noite. Voltam os pés ao soalho gasto e antigo. Abre-se a porta e o sono. É hora de deixar cair a roupa. Perto do chão existe o lugar onde o corpo se deita para, em algumas horas, deixar de estar presente no lugar dos sonhos.
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