30.11.10

NOTA

Não é meu hábito apagar o que aqui publico. Acontece que, algumas fotografias publicadas e identificadas com o nome do respectivo autor foram alvo, por parte do mesmo, de alguma irritação e descontentamento. Depois de me informar sobre a legitimidade ou não do meu procedimento, verifiquei que não incorri em nenhum acto/crime, apesar de reconhecer que deveria ter informado o autor antes da respectiva publicação. Pelo silêncio antes do acto, ficam as desculpas.

23.11.10

LIVROS GENIAIS


Paul Klee

“Há sons que saem dos actos de amor”. Bloom continua de Viagem, até à Índia. Eu continuo de boca aberta e respiração quase parada. As páginas são brancas e a capa que se esconde por baixo de um vermelho de sangue é de uma brancura irritante. Um senhor que escreve até aos limites do entendimento faz com que a inteligência rebente para dentro de um balde cheio de vontades. Não há nenhuma obra de Gonçalo M. Tavares que possa pôr-se na estante atrás da porta. Todas precisam de ocupar um lugar ao nível dos olhos e das mãos. É preciso comer palavras em dias espessos, porque há sons que saem de livros geniais.

22.11.10

ALÍNEA DA SABEDORIA


Paul Klee

“A sabedoria é um conjunto de habilidades que se exerce na relação com o mundo, em pleno isolamento, e mesmo em plena fuga. Saber como fugir, eis uma alínea da sabedoria."
Gonçalo M. Tavares; Viagem à Índia.

19.11.10

SER OUTRA (8)


Ser outra é, também, engolir a paisagem e sentir que toda a realidade se digere quando o corpo vive e a atenção faz cócegas na consciência.

18.11.10

SER OUTRA (7)


Um dia poderei experimentar a ser outra. Agarrar-me ao volante e sair de mim. Passar pelas árvores e dizer bom dia; olhar para a estrada e perceber que, percorrida, fica com aspecto mais duro, porque por ela passam todos os medos.

17.11.10

SER OUTRA (6)


Um dia poderei experimentar a ser outra. Um dia, quando a minha experiência encontrar lugar, sou eu que vou responder, em frente a um espelho quadrado com moldura grossa. Um dia, quando eu experimentar a ser outra, vou chegar mais perto do espelho que escondi atrás da porta e colocá-lo mesmo em frente à vida.

16.11.10

SER OUTRA (5)


Um dia poderei experimentar a ser outra. Viro-me para o lado esquerdo e digo tudo o que sinto, porque dizer o que penso faz-me deixar de sentir... e isso dói muito.

15.11.10

SER OUTRA (4)


Um dia poderei experimentar a ser outra. Saio à rua na hora do sol nascente e levanto os braços ao céu. Grito a todos quantos me olham e fujo para debaixo das mesas. Depois, vêm buscar-me cedo, antes do sol-posto, para que vizinhos e amigos se despeçam com todas as mãos que têm.

14.11.10

SER OUTRA (3)


Um dia poderei experimentar a ser outra. Fico em casa, fechada por dentro e tapada com uma manta vermelha. Vou buscar os óculos de sol para poder ver a claridade. Depois, adormeço no escuro, que é a claridade em dia de zanga.

13.11.10

SER OUTRA (2)


Um dia poderei experimentar a ser outra. Experimentarei todos os prazeres, sem me preocupar com o que persiste, porque isso, fica tão dentro da caixa que não quero chegar lá.

12.11.10

SER OUTRA (1)


Um dia poderei experimentar a ser outra. Experimentarei todos os prazeres, sem me preocupar com o que acontece na parte de cima da realidade.

11.11.10

CASTANHAS

Hoje toda a gente publica informações sobre castanhas e água-pé. Hoje todos comem castanhas e bebem água-pé. Há gente que escreve posts sobre o que os outros publicam, o que os outros comem e o que os outros bebem. Hoje, há gente que não arranja assunto e prefere sugar o assunto dos outros.

10.11.10

FALTA DE IMAGEM

Não se encontram imagens que façam arrepiar mortais, por isso, escrevem-se palavras sem conteúdo.

8.11.10

ESPAÇOS


Juarez Machado

Fechou os olhos devagar. As pálpebras tocaram no fundo de si. Gemeu. Ficou quieta à espera de poder sentir tudo. O silêncio era imperativo. As mãos enrolaram todos os sentidos e o corpo curvou-se para dizer Sim. Ao mesmo tempo que a porta se fechou, os olhos abriram-se para o espaço que estava em cima da mesa. Pegou nos ombros e na cabeça e ergueu-se. O silêncio tinha deixado de existir.

5.11.10

BALEIA ABSURDA


Kurt Schitters

"Não é por acaso que não consegues, por mais que tentes,
atingir em cheio o dia – qualquer que ele seja –
como se faz às baleias com um arpão.
Os dias têm um invólucro espesso,
uma armadura do material mais espesso que existe:
tudo aquilo de que não se sabe onde está o centro
está seguro.
Assim são os nossos dias que bem queríamos aniquilar
com um arpão. Baleia absurda, sem corpo,
o tempo."

Gonçalo M. Tavares; Uma Viagem à Índia. Canto I


4.11.10

MONÓLOGO FEITO DE BARRO


Não me vês? Já te disse que estou aqui. Parece que fazes de propósito e te escondes para me ver. Eu sei que estás aí. No dia em que desapareceste eu senti mais ainda a tua presença, como se corresses para debaixo da mesa, com o tampo em cima das costas e o medo em cima da alma. No dia em que fugiste, ficaste tão perto que me sufocaste.

Debaixo desse tampo que não te tapa nem te protege, pareces um molde de barro, uma espécie de pessoa que se enrola na massa densa que não materializa coisa nenhuma. O tampo da mesa é duro, mas tu não. Tu és uma qualquer moldura que procura o quadro. Tu és uma pessoa que fugiu para debaixo de uma mesa.

3.11.10

PORQUE SIM


Numa noite em que o calor tomava existência no escritório, Luísa encontrou um corpo por trás de um monitor rectangular e claro. Escrevia palavras com jeito.

Os parágrafos sucederam-se com conteúdo e forma. Bonitos. O interlocutor foi plano. Luísa arrepiou-se, colocou a sensibilidade acima do entendimento e a beleza das palavras aconteceu, a troca de experiências foi realidade. Os dois existiram enquanto foi possível a existência a quatro mãos. Depois, ficaram duas mãos de um lado e duas mãos do outro.
Quando um par de braços se afasta e as mãos se descolam de um teclado dividido em noites quentes, há gente a correr, com o grito calado, com uma indiferença ou uma qualquer indignação. Não tem importância, há relevância nos acontecimentos que encontram sentido numa relação directa de si para consigo. Luísa calou mas sabe, até hoje, que aquelas mãos tiveram forma no momento em que era urgente escrever e sentir.

Agora, enquanto escreve o passado, deseja um presente bonito para quem foi actor de uma história que resvalou no silêncio. E grita alto aos que a ouvem: as palavras não escritas são, muitas vezes, o desassossego, a respiração que se trava porque sim.

1.11.10

DIA DO BOLINHO


Georges Seurat

Com um saco na mão e muita esperança. Reunidos à porta de uma vizinha, íamos contentes, encher o saco de rebuçados, moedas e bolos. No fim do dia era despejado em cima de uma arca. Separavam-se as iguarias do dinheiro e soltava-se o riso. Dia feito.