Sempre conheci o Rui com os colarinhos da camisa engomados, os botões pregados, as calças vincadas e as ideias em gavetas. Não consegue viver com um cabelo fora do lugar e isso traduz-se numa presença assídua, silenciosa e bem comportada. Penteado até às profundezas do crânio, é o tipo de homem de que todas as mulheres gostam mas nenhuma mulher quer.
No dia em que me conheceu, disponibilizou-se para ajudar no que precisasse. O Rui estava contente, havia uma colega a quem ele podia mostrar a sua bondade. Nunca duvidei da bondade do Rui e sempre lhe reconheci competência.
A Maria adorava reunir, convocava os colegas como quem envia convites para festas. Era um prazer encher a mesa de folhas, informar sobre aquilo que poderíamos ler em casa no e-mail, encetar diálogos vazios e fazer pouco mais que coisa nenhuma durante duas horas. Há muitos anos que eu conhecia a Maria e a sua obsessão por reuniões. Vivia sozinha num apartamento com quatro gatos e a sua vida era pouco mais que o emprego e as compras de super-mercado. Era uma mulher baixinha, sem pescoço, com o queixo ligeiramente curvado na direcção do nariz e uma capacidade de síntese igual à dos secretários de estado. Presidia às reuniões como quem preside a uma importante assembleia, com a seriedade posta no rosto, a responsabilidade em cima dos ombros e a postura cheia de uma importância que não existe, considerava o seu cargo parecido com o de um monarca que tem que tomar decisões sobre o futuro de um país.
Todos percebíamos a necessidade de afirmação da Maria, todos a ouvíamos com atenção, ela ficava contente quando as pessoas olhavam para o vazio das suas palavras. Em dias de reunião levava sempre o batom nos lábios e o colar no pescoço. Era espessa a expressão que fazia quando nos interpelava sobre questões pequenas.
Pai é estrutura de ferro e aço posta em cima de terra firme. Pai é coluna que não abana. Pai é presença eterna. E quando pensamos num pai que pode ir embora, a estrutura de ferro e aço treme, a coluna mexe e a presença fica escondida. Tenho pai. Lindo. Não quero que ele vá, por isso me seguro de todas as formas que encontro. Parabéns, pai.
Há muitos anos que o mar era companheiro. Sentava-se no degrau perto da areia e inventava histórias de com o que via: algas, búzios e conchas eram os personagens que criava quando lhe apetecia imaginar. Sempre gostou mais da praia em frente da casa do que do jardim, a parte de traz trazia as lembranças de uma menina que cresceu sozinha. Há muito tempo que aquela casa era sua, a herança de uma avó bonita tinha-a posto ali, dona de uma propriedade, de um recanto, de muitas memórias.
Todos os dias de manhã, Teresa acordava com o ressoar das ondas. Há muito que estava habituada ao natural despertador que a avisava da madrugada. Vivia sozinha. Os filhos tinham partido para a cidade e o marido morrera muito novo. Teresa sabia a importância de uma casa de família e, por isso, mantinha-se nela sem que dúvidas a assaltassem. A cozinha era o lugar onde inventava sabores e a mesa grande da sala era o lugar dos visitantes que, de longe em longe, vinham provar iguarias.
Teresa gostava de receber bem, misturava os sabores com as histórias que imaginava sentada no degrau perto da areia. Os convidados vinham aos jantares de Teresa entusiasmados. Depois do jantar, onde os morangos e a poesia eram mistura perfeita, Teresa convidava a que se sentassem perto do patamar de pedra que dava para a duna. Nas cadeiras de vime pintadas de castanho, todos construíam histórias. Teresa tinha escolhido o vinho e o poema da noite. Depois, era preciso que convidados e parentes retribuíssem com o que tinham ou podiam.
Quase sempre a parte de cima da casa era ponto de partida para histórias incomuns. Com o copo na mão e muito riso, Teresa ouvia os contos e os poemas que os amigos lhe ofereciam. Fadas e duendes, anjos e demónios, vagueavam de quarto em quarto pousando em estantes e quadros, rindo de fotografias e peças de mobiliário encerado. Toda a noite era cheia de momentos e até os cães enchiam o ambiente quando, por causa das gargalhadas, ladravam contentes.
Teresa sabia que aquela casa era completa, tinha dela recordações de que não podia, nem queria fugir. Vivia com todos os que, com ela, queriam dividir poemas, por isso ali ficava, inventando na cozinha, compondo na sala e mostrando, perto da duna, tudo a que dava valor.
O frasco abriu-se? Caíram os títulos? Deixa-os espalhados, para quê empurra-los para o texto? Não fazem falta. Varre-os, enterra-os, come-os ou destrói-os dentro de um saco atrofiado até às pontas. Deixa-os postos ou ausentes, ninguém se importará. Fechaste a janela? Boa. Esqueceste as imagens? Os dias da forma virão, quando regressares do embalo.
15.3.11
Escreve frases sem título, inventa o que dizer, pronuncia nomes e veste fantasmas que voltam. Vai buscar o jarro com a água morna e enterra os pés em sal. Escreve e esquece-te de todas as imagens. Vagueia pelos poucos que te lêem e diz-lhes que estás cansada. Vai-te embora no dia do silêncio, quando as palavras te engasgarem e as frases te entupirem de tédio. Enfia todos os títulos num frasco transparente e coloca-o em cima do frigorífico. Escreve frases sem título e abre a janela. Volta para perto dos que sabem quem és.
14.3.11
“Liguem um qualquer canal de televisão e entrarão imediatamente no mundo dos semi-deuses e dos fantasmas esfomeados.”
Sogyal Rinpoche; O Livro Tibetano da Vida e da Morte.
13.3.11
“Quando muitos te cobrirem de louvores, verifica se ainda tens motivo de agrado ante ti próprio (…). Os teus autênticos bens são apenas do foro íntimo.”
Séneca; Cartas a Lucílio
12.3.11
“Ninguém nasce rico, no momento de vir à luz temos de contentar-nos com uma fralda e um pouco de leite: e é a partir de tais começos que chegamos a pensar que um reino é estreito para nós!...”
Séneca; Cartas a Lucílio
11.3.11
"O que preferes tu? Uma indigência que te sacia ou uma abundância que te deixa esfomeado?"
Talvez o início da Quaresma não seja o tempo propício para falar de pirilaus, de qualquer forma arrisco. A escultura causou alguma indignação quando, na cidade de Lisboa, foi exposta por João Cutileiro. Confesso total ignorância quanto a motivações artísticas ou outras, confesso ainda completa preguiça para investigações sobre esculturas postas em parques.
O tema tem tanto interesse como qualquer outro a que se dedique alma atenta e empenhada. Não percebo o pudor dos que fogem ao assunto porque sei que são esses os que mais gostam do assunto. Às mulheres é vedada a palavra porque mal fica no vocabulário “de saias”, contudo, é-lhes pedido muito mais que silêncio em lugar quente e húmido. Hipocrisia? Com certeza.
Fala-se livre e publicamente de assassínios, guerra, fome e outras pornografias. Baixa-se o tom de voz quando o tema é pirilau. Vergonha do agradável e prazer na verborreia ensanguentada? O ser humano é demasiado estranho.
Tinha dezoito anos e sabia tão pouco da vida que, de pensar nisso, fico com os pêlos dos braços em arrepio. Oscar wilde dizia que “o problema de uma mulher de 18 anos é, exactamente, ter dezoito anos.” Confirmo. Nada como deixar passar o tempo e sentir o peso dos dias para perceber o quanto se aprende com esse incessante movimento da consciência. O corpo envelhece. A arrogância e a energia da juventude vão-se. Ainda bem.
Chegada a Lisboa com a mania que era mulher, de pasta na mão a caminho da faculdade, pensava que a independência tinha chegado. Engano. Nem era independente nem era mulher. A experiência é a única coisa que não se ensina. O convencimento perdeu-se no dia em que entrei no mundo do trabalho e percebi que não era o canudo que valia, mas o saber fazer. Deixei a pasta encostada a uma parede vazia e comecei a andar com maior confiança, já não tropeçava naquele objecto duro com fecho dourado. Aquela coisa postiça deixava de me servir, de encaixar num lugar onde os trunfos eram outros.
Escrevia como quem não pensa. Hoje as palavras são outras, já não cabem na pasta da faculdade que ficou encostada à parede. Mudou o jogo. Há pessoas que me lêem e nunca lhes agradeci por isso. Que o enorme abraço chegue perto dos que, conhecendo-me ou não, me soletram com a energia que têm.
Um grande senhor do espectáculo ensinou-me: “não escrevas para ti, escreve para os que te lêem”.
Quando crescemos ouvimos os outros e percebemos que não somos o centro do mundo. É apenas uma das diferenças entre as meninas e as mulheres. Há outras.
“Se queres ter uma vida agradável deixa de preocupar-te com ela! Nenhum objecto dá bem-estar ao seu possuidor senão quando este está preparado para ficar sem ele; e nenhuma coisa mais facilmente podemos perder do que aquela que é irrecuperável depois de perdida”.
Depois da história fica a vida. Inventam-se palavras, mastigam-se instantes de loucura encarnada. Os dedos descansam em cima da almofada branca, como se tudo pudesse acontecer ali, perto dos que nunca existiram porque nunca estiveram. Depois da história escrita em linhas pretas, a vida acontece depressa. O corpo estica-se e à cama se recolhe uma alma comprometida.
A mania de escrever o que não existe em cima do que acontece leva, algumas vezes, ao abismo insano. Há amores que se adiam. Há uma lição que nos é dada pela pessoa que será, talvez, a mais sensata numa das obras de Proust, uma certa Mme Leroi, à qual, quando lhe é pedida a sua visão sobre o amor, responde: “Amor? Faço-o muitas vezes, mas nunca falo sobre o assunto”. Talvez seja esse o erro, o de se querer falar sobre um assunto que não sustem as palavras. Persiste-se em erros e mantêm-se recusas. Olha-se para a parede branca. Supõe-se que estão lá letras azuis e fica-se com os olhos fixos em frases que não existem.
Estou sentada, o candeeiro tem uma lâmpada pequena e eu faço um esforço para te escrever. Chove muito lá fora. Vim passar uns dias ao pé do mar mas acabei por ligar o aquecimento e a lâmpada de um candeeiro velho. Fiquei em casa a construir frases. O mar está azul demais para que o possa entender. As ondas desapareceram e eu não sei se alguém é meu vizinho. A avaliar pelo silêncio, julgo que apenas a poucos quilómetros poderia encontrar com quem jantar. Tenho medo de existir. Está frio e o meu nariz fica vermelho de raiva quando o vento e a maresia se misturam para uma visita.
Era a época do encontro. Tinha entendido a importância de deixar ser no amor. Há alturas em que o amor se funde com a morte, como se as duas realidades não pudessem separar-se. Fundiu-se o desejo de música com o dia do seu fim. Entregou o disco. Ficou o registo dos sons depois de todo o ruído desaparecer. Ficou escrita a história e, por causa disso, o amor não acabou. Por causa disso foi para um lugar longe do tempo.
Levantou-se com a impressão de que o chá verde se tinha transformado em massa consistente no estômago. Tinha ouvido palavras. Todos os sons se transformavam em grito. As mãos eram garras prontas a deixarem-na sem ar. Levantou-se e deixou as flores em cima da mesa. Foi estúpida quando puxou a nota de vinte euros e disse: “pague tudo”. Idiota. Tinha de ter saído sem pagar nada. As palavras já lhe tinham feito mossa suficiente, não era preciso ficar sem a nota de vinte euros. Conduziu até casa com um disco gravado há muitos anos para o dia da sua morte. Mataram-na, deram tiros para o seu chão. E agora?