30.4.12

O lado esquerdo da dor


Os passos marcavam o chão com certeza. Andou depressa em cima das vontades adiadas. Não lhe apetecia que chovesse. Saiu de casa com os lábios cerrados. O vento fez com que andasse até às árvores nuas. Dia frio, como a alma de quem se levanta tarde. Os passos marcavam todos os quarteirões, contados do lado esquerdo da dor. 

Não queria que o tempo ficasse escuro, mas a manhã já tinha prometido uma certa não simpatia. Chegou às árvores e parou. A chuva tinha vindo cheia de raiva. Esperou que o molhado da fúria passasse e seguiu, com os pés a marcar a marcha, agora molhada e infinitamente reconhecida. 

Abriu a porta de casa e esticou os músculos que traziam vontades perdidas. Recuperou o corpo esquecido e, as pernas saltaram para dentro da banheira. Era a hora do almoço.

29.4.12

Mortalha da noite

Foto Richard Avedon




















Risos em cima da mesa. Leve, o humor desenrolado na mortalha da noite. Chove e o vento entra nos ossos. Tímida moleza. Ouvem-se todos os sons do corpo. A vontade não está dentro do prato das bolachas com amêndoa. E a mortalha continua nos dedos de quem já não treme de incerteza.

28.4.12

Metronomy - Everything Goes My Way


O que faz uma mulher depois de pentear o cabelo, de pintar as unhas e de pôr alma no desassossego?

25.4.12

Liberdade

Aquela força que acontece quando os muros desaparecem e os limites ficam na consciência.

24.4.12

Sem cor no arquivo

Eram centenas de imagens por cima de palavras. A escolha, a vontade, a estética e o trabalho de anos. Arquivo para visitar o passado das palavras e dos gestos em pinturas. Desapareceram as imagens e eu não entendo. Todas estavam identificadas, tinham sido escolhidas ao lado do meu chá verde, quente e macio. Sem açúcar. O arquivo está com palavras e não tem ritmo nem cor. A vontade de acabar com escolhas difíceis e recolher ao preto e branco das letras, ao vazio ou ao conteúdo de algumas dispersas ideias. Tiraram de mim a vontade de escolher e isso aborrece-me.


23.4.12

Dia mundial do livro













“Nós somos feitos de tempo. É essa a força que nos confere uma identidade própria. Basta fecharmos os olhos e sentimo-la. É o tempo que define a nossa existência (…). O tempo é a única narrativa que conta. Prolonga os acontecimentos e torna possível que sintamos dor e a superemos e que assistamos ao espetáculo da morte e continuemos a viver. Mas não para ele. Ele move-se noutra estrutura, noutra cultura, onde o tempo é uma dimensão à parte, pura e isolada, que não oferece abrigo.”
O Corpo enquanto arte; Don DeLillo

22.4.12

Por baixo da realidade


A parte de cima da realidade é mais dura que a parte de baixo. No dia em que percebi isso não atendi o telefone, comi metade do que tinha posto no prato, bebi dois litros de água lisa e deitei-me debaixo das mantas encavalitadas no sofá. 

Quando acordei, a realidade continuava lá, com a parte macia de fora e a parte dura bem no interior de todas as contradições.

20.4.12

Sucessão de momentos

Tiago Taron

















“O tempo parece escoar-se. O mundo acontece, prolonga-se numa sucessão de momentos e nós detemo-nos a olhar uma aranha espalmada contra a sua teia. Há na luz um fulgor que leva a que os objetos nos pareçam recortados com precisão, enquanto faixas brilhantes percorrem a baía. Sabemos melhor quem somos num dia de intensa claridade, depois de um temporal, quando o sentimento de si trespassa todas as folhas que caem, mesmo as mais pequenas. O vento remoreja entre os pinheiros e o mundo adquire uma existência irreversível e a aranha agarra-se à teia que o vento faz baloiçar.”

O Corpo enquanto arte; Don DeLillo

18.4.12

E agora?


Vais buscar a verdade à gaveta que insistes em fechar por causa de uma vergonha nojenta, ou manténs a mentira que carregas por causa de uma calma cobarde?
 

17.4.12

Depois

Depois vem o homem calmo dentro de um carro. Depois vêm as palavras serenas e os impulsos reprimidos. Depois vem a sensação de liberdade, ao volante de um duro entendimento das coisas bonitas que ficam longe. Depois vem a noite e o vento e a chuva e o vinho que dança. Depois vem a manhã fria, dentro dos cobertores com corpos cansados. 



16.4.12

Alguém me explica?

Depois de revirar alguns arquivos deste blogue, verifiquei que muitas imagens desapareceram. No lugar delas resta um quadrado escuro com um ponto de exclamação. Alguém me consegue explicar o motivo de semelhante desaparecimento? 
Andou uma mulher a seleccionar pinturas para depois ver este abandono!

Subidas


Sempre que subo, começo a tremer, com a alma posta nas pernas e o medo em cima da testa. As alturas desnorteiam-me, as escadas do intelecto estimulam-me e o escadote aterroriza-me. Há alturas e alturas. Disso a dúvida saiu, quando verifiquei que, sentimentos sobem depressa, ideias custam e concretizações doem.

10.4.12

Enterro dos risos

Paula Rego
















Dias inteiros de trás para a frente, sem saber se o lugar que está atrás é melhor que o lugar que está à frente. Dias de dúvida e desatino. Mãos postas em palavras estáticas e voz muda em lugares secos. Dias sem sequer ter vontade, esse monstro interior que procura objetivo e não encontra mais que parede. Noites de sono profundo e inútil, quando o querer tem os músculos moles e os risos se enterraram no tédio.

9.4.12

Mulher sentada

Howard Hodgkin
















Às vezes calo-me porque me sento. Nem os pés mexem nem a cabeça comanda os braços. Há silêncios que vêm da inércia e isso é estúpido. A estúpida inércia que vem colada à preguiça. Juntas têm feito de mim uma mulher sentada.