30.5.11

INCÓMODO

Era uma vez uma mulher que convivia muito bem com a verdade. Viu que todos se afastavam e percebeu o incómodo. Depois não chorou nem voltou para trás.

27.5.11

DISPARATE

- Firme nesse olhar a estrada, Luísa.
- Estava a pensar. Quando chegar a casa, tenho que ir buscar a folha branca.
- Estás bem?
- Estou óptima.
- Depois do fim-de-semana voltas para perto de ti.
- Estou sempre perto de mim, Pedro.
- Mesmo quando viajas numa espécie de corda entre duas pontas que te assustam?
- Mesmo quando estou em cima da corda, estou perto de mim, acredita.
- Claro que acredito. Depois do cansaço, os olhos ficam mais lentos, não é Luísa?
- É. Estou cansada mas feliz.
- Devemos chegar dentro de meia hora.
- E continuo a ver muito pouco.
- Acreditar no que não se vê é sempre sinal de afecto, sabias?
- Ou de estupidez.
- Não achas que vale a pena olhar para o que não se vê?
- Acho. E também acho que a lucidez pode conduzir à loucura.
- Que disparate, minha querida, que disparate.

26.5.11

HÁ DIAS ONDE A ALMA NÃO CABE

"Há dias abri um livro que não era para mim. Não é um costume meu ler um livro que não me apetece. Não naquele dia. Aliás acho mesmo um hábito detestável, esse de nos metermos nos livros alheios sem vontade própria. Mas ele estava ali parado a sorrir para mim a parecer dizer - “Come-me”. Não resisti “Comi”. A expectativa justificou-se plenamente.
Inspirada pelas memórias do quotidiano, a autora conduziu-me numa viagem poética onde o corpo e alma são protagonistas, em busca de uma reconciliação. O que à partida pode ser banal torna-se depois em algo que o distingue. A autora recorda com um olhar apaixonado, desiludido, solitário mas também critico, reduzidos, mas grandes pedaços da sua vida e partilha-os connosco.
Quem sabe uma autobiografia, ou uma viagem em busca de uma satisfação para uma desilusão por vezes constante que se prende a tudo. A ter e não ter. Acreditar ou não acreditar. Sentir que nunca nada está completo. Que nunca tempo algum é suficiente, e que a verdade é algo que nos pertence ou não. Falta-lhe tempo. Quer mais. Quer gente verdadeira e quer corresponder. Quer pertencer inteiramente a cada lugar e melhorar todos os lugares. Quer ser feliz. No meio de tanta coisa, deseja ser feliz.
Ingeri palavra a palavra com a abundância de sabores que o livro evidencia e descobri que uma palavra só, não é por vezes mais que solidão até se descobrir com outras palavras.
Agora em discurso directo: - Recorda-te do que a folha seca diz ao grão de areia”Quem vive modifica-se, não tenhas medo de descobrir novos rumos”. É urgente descobrires que verdade é a tua, porque a verdade que me resiste, é que enquanto existires como autora, eu estarei no lugar que sempre me pertenceu, a de leitor. Saboreei uma verdade que não pode ser adiada , onde a essência de um poeta só é captável por meio de uma metáfora. A tua essência  reside magnificamente nesta viagem e de forma singular em “Meu Momento”.
Parabéns! Beijos molhados deste leitor abusado e amigo.
Jorge Parente  




Obrigada, Jorge. Grande beijo.

25.5.11

GLORIFICAÇÃO DA DÚVIDA

“A nossa educação contemporânea doutrina-nos na glorificação das dúvidas, e de facto criou o que quase poderia ser denominado ‘teologia da dúvida’, na qual, para parecermos inteligentes, temos que mostrar que duvidamos de tudo, apontar sempre o que é errado e nunca, ou só muito raramente perguntar o que está certo ou o que é bom, denegrindo cinicamente todos os ideais e filosofias herdadas, bem como tudo o que seja feito por simples boa vontade e com o coração inocente”.
Sogyal Rinpoche; O Livro Tibetano da Vida e da morte.

24.5.11

TURISTAS ESPIRITUAIS

“Quando passamos a vida a procurar, essa busca torna-se, em si mesma, uma obsessão e começa a dominar-nos. Transformamo-nos em turistas espirituais, saltando de um lado para o outro sem chegarmos a lado nenhum”.
Sogyal Rinpoche; O Livro Tibetano da Vida e da morte.

23.5.11

SIMPATIA PORNOGRÁFICA

(…) Era importante que tivéssemos tido a coragem de dizer que as luzes da noite estavam apagadas por causa da claridade vinda da rua, que estávamos todos cansados de fingir, que a vida profissional não tem que ser misturada com bacalhau e vinho branco, que tudo o que estávamos ali a fazer era de uma simpatia tão pornográfica quanto pornográfico é o acto contrário à vontade (…).

22.5.11

COISAS QUE ME INQUIETAM (33)

Viver um domingo com o sono herdado da noite anterior e perceber que a véspera é coisa não recuperável.

21.5.11

DOBRAS E GRITOS (52)

Não entendo as afirmações masculinas: "levantei a mesa" e "mudei a fralda ao meu filho".  
Serão actos heróicos de ajuda doméstica? 
Dá-me vontade de rebolar no chão e rir até à inconsciência.

19.5.11

APAGAR A LUZ À POLÍTICA

Não quero escrever sobre política. Ficam os dedos a doer e os braços a dormir. A política tem, sobre o meu corpo, poderes estranhos. Começo a ficar mal disposta e, quando insisto, chego a desmaiar de náusea. É complicado escrever sobre assunto que cheira mal e tem espessura viscosa. 
Nos regimes democráticos, a política é, ou melhor, deveria ser, uma actividade de cidadãos que se ocupam dos assuntos públicos. É aí que reside o nojo e a aversão: porque a política é uma actividade de cidadãos que se ocupam dos assuntos privados deixando o bem comum no fundo da gaveta esquecida do armário de canto, chego à conclusão que os cidadãos não o são e os assuntos públicos são coisa de nenhuma importância. 
Depois começam os formigueiros nas pernas e a vontade de fugir. Depois os vómitos e a vontade de apagar a luz.

18.5.11

ENGOLIR A VIDA

Era uma vez uma mulher. Tinha nas mãos o abandono e nas pernas a vida toda. Enquanto falava, usava a mão esquerda e tinha nas pernas a inquietude. A mão direita servia para guardar o barulho do telemóvel e o silêncio das chaves de casa. Era uma mulher contente porque pensava que podia engolir a vida. Percebeu que a vida se engole, que as mãos agarram quando querem, e que as pernas levam a vontade muito longe. Um dia perdeu as chaves de casa, pegou no telemóvel para pedir ajuda e encontrou-a muito perto.

17.5.11

COMER O MUNDO

Era uma vez um homem. Tinha nas mãos a arrogância e nas pernas o medo inteiro. Enquanto falava, usava a mão direita e tinha sempre as pernas quietas. A mão esquerda servia para segurar o silêncio do telemóvel e o barulho das chaves do carro. Era um homem triste porque pensava que podia comer o mundo. Nunca percebeu que o mundo não se come, que as mãos não agarram nada que se não veja e que as pernas quietas levam a lugar nenhum. Um dia perdeu as chaves do carro, ligou o telemóvel para pedir ajuda mas ninguém o atendeu.

16.5.11

IR E VOLTAR

O dia em que me vou embora é o dia dos passos para fora do lugar. A vontade é posta longe do que costumo viver. O dia do regresso é o dia dos braços em cima da mesa e da vontade inteira dentro de uma casa com pessoas e coisas e sons e medos e prantos e gritos e cheiros e risos.

13.5.11

CONSOLO IRRITANTE

Desembrulha as palavras à minha frente e põe todas as coisas nuas. Puxa a corda com força. Desembrulha tudo outra vez e diz-me que há verdades escondidas. Pega na corda e guarda-a. Irrita-me e consola-me. É preciso.

12.5.11

NOITE MENTIROSA

Tive a certeza de uma semana ao contrário, a luz substituía o escuro e eu teria que deitar-me na noite mentirosa. O desencontro entre as horas marcadas no relógio e a claridade do tempo tomava-me o espanto todo.

11.5.11

CARTA À LUISA

“Luísa, ainda bem que ficou a construir frases. Não tenha medo de existir... peça à Dobra que a deixe sair...Que tal continuar a construir frases? Depois, bem, depois - quando a tempestade acalmar - procure no silêncio o barulho de alguém... Ainda que esse alguém esteja a ‘poucos quilómetros’ de distância.
Ó Dobra deixe a moça viver! Faça lá esse favorzito!”
Beijinhos

Cara leitora;
Devo agradecer as palavras. Vou coloca-las frente ao espelho. Luísa é uma mulher corajosa, só tem medo de existir nos dias curtos de Inverno, depois avança para o mundo com o sol e o vento. Um dia correu muito depressa e magoou o braço direito mas percebeu que podia cura-lo com o esquerdo, foi o que fez. “Procurar no silêncio o barulho de alguém” é muito bonito. Deixe-me dizer-lhe uma coisa importante: os barulhos que encontramos em cartas como esta são sementes que precisamos colocar na terra para que floresçam. Agradeço-lhe tanto que lhe deixo um presente. Espero que goste. Beijinhos.


7.5.11

OBJECTO IMPORTANTE

O volante é um objecto que serve para por à frente da vontade. O volante é tão importante quanto as pernas, mas precisa das veias e dos músculos dos braços.

6.5.11

COM PERGUNTAS NÃO SE DANÇA

Não há resposta quando a pergunta traz consigo o pressuposto retirado de uma realidade que se inventa. Quando a pergunta se ajeita, quando se dança com as palavras para encontrar a resposta que se imaginou, é melhor não fazer a pergunta.

5.5.11

PULO

Olhei em volta, apeteceu-me falar com a menina que puxava a mão da mãe para a rua, com o senhor idoso que se encolhia num canto cheio de medo, com a porteira do prédio que comia o croissant com os olhos abertos de espanto. Apetecia-me dizer a todos que rissem, que dessem um pulo e fossem trabalhar com a música dentro da carteira.

2.5.11

DOBRAS E GRITOS (51)

Fugir para longe do que não se conhece é colocar debaixo da mesa uma realidade que, fora do nosso alcance, se nega com todo o empenho e cobardia.