25.7.11

A SUBIDA DA MATILDE

- Professora Teresa, acho que já subi e já desci.
- Bom dia, Matilde.
- Desculpe professora, bom dia. Estou contente. Lembra-se de me perguntar se queria ver o fundo do mar e se queria voar?
- Lembro sim.
- Pois eu já fiz as duas coisas.
- A sério, Matilde?
- Já. Eu depois percebi o que me queria dizer. Cheguei a casa e sentei-me a pensar em tudo. Até chorei.
- Que bom. Chorar ajuda imenso. E que viste na subida?
- Vi todas as minhas dúvidas.
- E na descida?
- Na descida identifiquei angústias.
- Muito bem. E agora? Que vais fazer com o que descobriste?
- Ainda não sei. A professora ajuda-me?

24.7.11

NADAR E ENTENDER

- Tem que ir ao médico Dona Luísa.
- Já fui.
- E ele? Não lhe receitou nada?
- Não, mandou-me nadar.
- Então nade, ora essa. Mais vale nadar que querer entender as coisas não acha?
- Não, não acho.

23.7.11

O ESPANTO DA MATILDE

- Tens que subir, Matilde, deixar essa escuridão e esse comodismo fáceis, acreditar em ti e na possibilidade de encontrar um caminho. Não rejeites o desconhecido, podes ficar parada no espaço e no tempo, podes vir a tornar-te cega, podes não conseguir mais que uma vida à superfície. Não queres ver o fundo do mar? Não te apetece voar? Não te interessa perceber para além do que os teus olhos alcançam?
- Desculpe, professora Teresa, eu prometo que vou pensar nisso tudo mas por favor não me confunda ainda mais.

22.7.11

ILUMINAR A VERDADE

- Estão todos presentes?
- Não, falta o Luís.
- Posso? Desculpe o atraso. Posso acender professora?
- Não te chega a luz de cima, Luís? É preciso uma vela?
- Chega, mas como a aula passada tive dificuldade em ver a verdade, trouxe a vela para poder ilumina-la caso surja.
- E achas que a verdade se vê com a luz de uma vela em cima de uma mesa?
- Acho que é possível, sim, tudo dependerá da força com que a procuramos, professora.

21.7.11

ESPELHOS

Olhar pela janela faz-me construir a paisagem que todos os dias muda. Eu também mudo todos os dias. O espelho dá-me tantas imagens que me confundo quando as vejo. Também tenho um espelho dentro, vejo todos os sentimentos enquanto choro, grito, rio ou danço. É um espelho muito mais nítido e muito mais robusto porque, no corpo, se instalou desde que nasci. 

20.7.11

LUZ E ABRAÇOS

Chegar ao café e encontrar tudo empacotado no saco das dúvidas é tão embaraçoso quanto perceber a descoberta de algumas verdades que tinha escondido no corpo.
Arruma-se a mesa para o jantar numa casa com cheiro a flores. Os livros à espera de um final estão perto dos passos na rua. O medo dos outros está lá e, por causa disso, as pernas levam-me até aos abraços.
Porque é urgente o descanso de uma luz permanente.

19.7.11

ADVERTÊNCIA

- Sou uma pessoa igual a ti, mas com vagina.
- Eu sei. Essa frase é de um filme.
- É, não a esqueci. Verdades não devem esquecer-se.

18.7.11

CONVITE

Quando recebi o convite para jantar fiquei tão surpreendida que disse que sim sem pensar. Era a hora de colocar o vestido preto e os sapatos abertos atrás, sempre arejava os calcanhares enquanto ouvia conversa morna.

17.7.11

MESA DA SALA

Quando entrei na sala estava uma mesa posta ao canto. A toalha de linho com renda à ponta era a prova de que a organização tradicional da Maria subsistira ao tempo. 
Copos de cristal com o pé alto e o lapidado complexo, pratos da vista alegre e a garrafa de vinho com um aventalinho de pano-cru, bem ao jeito dos anos oitenta.

16.7.11

ALGUMA LOUCURA

"E se em vez de poesia e de arte,
eu te falasse da inutilidade da filosofia,
tentando com isso persuadir-te que as palavras
têm apenas a função de dizer o que se não quer,
que a gramática da criação não suporta letras,
e que os únicos sons do amor são os que o corpo manifesta
e que a alma não consegue desaprovar.
Para que servem tantas – inúteis - filosofias
senão para preencher prateleiras ávidas de saber?
Se ao menos a filosofia fosse descartável,
poderíamos tirar algum prazer disso,
e depois ansiarmos pela próxima vez,
como se tivéssemos degustado um néctar dos deuses
ou vislumbrado uma verdade inabalável."

SILÊNCIOS

O teu silêncio é diferente do meu, é um espaço de compreensão igual à que se tem enquanto se saboreia uma manga madura. A certeza absoluta de um prazer interminável fica cá dentro para sempre.

15.7.11

FALSAS SENSAÇÕES

 - Mesmo quando as horas passam certinhas, tu não consegues controlar nada.
- Mas tenho a sensação que controlo e isso é bom.
- Como é que uma mentira pode ser boa?
- Quando nos traz sensação de verdade.
 -Queres ter falsas sensações? 
- Não. Mas uso isso como truque para me sentir mais seguro.
- E sentes?
- Sinto, enquanto não penso. A segurança vem da vontade de não pensar, da insensatez escolhida por cobardia.

14.7.11

ENTENDIMENTO

Eu posso tudo porque percebes que esse tudo é a afirmação de um eu que não esbarra no desejo que tens fora das pestanas, que não empurra o teu mais tranquilo bem-estar.

13.7.11

SEM PRESSA

- Por favor, leve-nos ao Café Malaca.
- Onde fica?
- Numa casinha velha que espreita o rio com vergonha.
- Estão com pressa?
- Não. Acabámos de perceber a importância das noites que não se apressam.

12.7.11

TEMPO DAS PALAVRAS

Porque o tempo de dizer palavras é tempo escolhido por quem as diz, não por quem quer ouvi-las.

9.7.11

INDO



As árvores esperam, os pássaros já voaram e a estrada passa por baixo de mim à velocidade que eu quiser.

8.7.11

INVENTAR O MUNDO

A Infância é a fase em que o tempo passa devagar para os pequenos e depressa para os grandes. Os primeiros vêem o mundo muito lento. Os segundos vêem-no muito apressado.
Quando os grandes, e os grandes que foram pequenos se encontram no mundo, percebem que afinal o lugar onde vivem é o mesmo. Sentam-se à mesa e falam de todas as coisas que vêem.
Porque o mundo se inventa dentro do corpo que sente, aquilo que fazemos no mundo todos os dias serve para perceber que invenções são coisas bonitas, se as usarmos para respirar ar limpo.

7.7.11

MORRER DE PÉ

Mantêm o tronco e os ramos, abanam sem que o cair as convide, perdem folhas por natureza ou desgraça e morrem sempre de pé.
Não sei se é bom morrer de pé. O desconforto agudiza-se, a visão turva demais, o horizonte fica distante e não é certo que os olhos fechem enquanto as pernas não tremem.
As árvores não têm olhos nem pernas. Julgo eu.

6.7.11

SUGADORES

- Bom dia. Tem sugadores de escuro?
- Como?
- Sugadores daqueles que usamos para ler, por exemplo.
- Nunca ouvi falar em tal coisa, minha senhora.
- Mas sabe o que é o escuro?
- Sei.
- E também sabe o que é sugar?
- É pôr dentro de nós, inspirar, qualquer coisa desse tipo.
- E o que é que suga o escuro?
- Será alguma coisa que o faz desaparecer.
- Exactamente.
- Então a senhora deve querer uma lâmpada.

5.7.11

INTRANQUILIDADES

Não sei se escreva ou se me cale. Não sei se a água continua límpida, se o céu continua claro. Não sei se hoje existe mais luz por causa da esperança. Não sei se as mãos estão gastas por causa do silêncio. 
Não sei se fique aqui, a escrever para os que não conheço. Não sei de nada enquanto existir intranquila. 
Certezas são jarros de vinho tinto à espera dos convidados. Não conheço quem vem beber nem sei se o vinho é bom para o jantar.

2.7.11

TER

Se eu for prisioneira de tudo o que não tenho viverei aflita. O desassossego será imenso. O sono vai-se embora de mãos dadas com o medo de não vir a possuir.
Depois possuo. Tenho. O sono regressa e tudo volta ao princípio.
É eterno o desassossego, enquanto eu pensar que quero ter alguma coisa.

1.7.11

DIABO ESCONDIDO

As pessoas arranjam-se para ir à missa. Deus observa-as atento. A roupa bonita que sai ao
Domingo para ver Deus tem que arejar do mofo de um diabo escondido nas gavetas.