30.11.11

Desculpas adiadas

Foto de um pedaço de atenção












Deambulei pela casa enquanto tomava coragem para pegar no telefone e dar uma desculpa. Coloquei o disco, acendi o cigarro, apaguei o cigarro, desliguei o disco, voltei a olhar para o telemóvel e apaguei a luz. 

Era hora de sair para os arredores, experimentar a ser outra, passar pelas árvores e dizer bom-dia, olhar para a estrada e perceber que, percorrida, fica com aspeto mais duro porque, por ela, podem passar todos os medos. 

Pus o cinto de segurança. Apanhei a via rápida em direção a casa da Maria, a mulher dos filhos gatos e das idas ao supermercado.


29.11.11

Caminho de regresso

Foto de uma sombra que sou eu













Corri para a mesa do restaurante e paguei a conta. Entrei no caminho de regresso e fiz a estrada em duas horas de chuva e vento. O dia não tinha acabado e a noite não acontecia. A água descia do céu à terra e o tempo transportava-me para fora da minha consciência. Uma réstia de lucidez levava-me a pôr o pé direito no acelerador. 

Depois sentei-me, deixei que a água escorresse pelo corpo e que o frio entrasse nos ossos, puxei para mim as memórias e adormeci sem fechar os olhos. Já não fazia sentido procurar certezas, as pernas diziam-mo e os braços provavam-mo. De vez em quando um relâmpago, um estado de intermitência entre o escuro e o claro. Que importam as certezas quando o corpo está todo vivo?

26.11.11

Bonito demais



Sem conseguir respirar. A beleza que procuro e só encontro quando a vista se me turva.

25.11.11

Diário de Etelvina (08)

As meninas decidiram fingir que estavam a dormir, estavam tão acordadas quanto o sol que, naquele dia, nascera com o viço da manhã. Etelvina começou a cantar baixinho. As meninas abriram os olhos com indignação e afirmaram o despropósito da funcionária que cantava em serviço. No piso 3 julgava-se possuir a verdade. Da fragilidade e da ignorância, brotavam os maiores disparates. Etelvina tentava socorrer-se da experiência, esbracejava quando podia e abria os olhos com o poder dentro das pálpebras. As meninas ignoravam a funcionária. Viviam aquém de si mesmas e não queriam perceber que os dias ali passados eram a parte de trás de uma vida fora do lugar. 

Paula Rego

24.11.11

Gente esquisita

- A professora é esquisita. Chega a ser irritante.
- Porquê?
- Porque é sempre ao contrário dos outros.
- Gostam de rebanhos?
- Gostamos de ser normais.
- O que é isso?
- É, sei lá… é sermos como os outros.
- Portanto, serem ovelhas de um rebanho que vos comanda.
- E que mal há nisso?
- Nenhum, caso se sintam bem.
- Claro que sentimos.
- Ótimo. Não precisam de perguntas, as respostas que os outros vos entregam bastam-vos.
- Nem sempre.
- Quando os outros vos mostram perspetivas diferentes são esquisitos, chegam até a ser irritantes.
- Lá está a professora a dar a volta à conversa!

22.11.11

Fome de uma vida

Juarez Machado
















As noites com o cheiro da canela e do vento são sempre maiores. Quando fazem do corpo instrumento de medida e dizem, do mundo, aquilo que  não é, o vento passa devagar. Ficam quietos em frente ao que treme, mexem nas mãos que procuram e percebem que o sentir clarifica toda a realidade. A canela deposita-se em cima do que comem com a fome de uma vida.

21.11.11

Sem explicações

Pollock
















No dia seguinte não encontrou explicações. Levantou-se cedo. Saiu da cama e sentiu o mundo muito frio. Tapou o desejo que tinha fora de si e riu baixinho. Depois deu um salto para fora da água que impedia a quietude. Voltou-se para o lado seco da realidade e fez, das matérias, pensamentos mais serenos que as plumas. As explicações estavam escondidas na última gaveta da cómoda. Não a abriu porque teve medo de as poder entender.

20.11.11

Não há motivo

Pollock
















Naquele dia não havia motivo. Não é preciso haver motivo. Entrou dentro da cama e sentiu o mundo quente demais. Destapou o que o desejo tinha guardado e riu alto. Junto do corpo que tremia fez, dos pensamentos, matérias duramente dóceis. Depois voltou-se para o lado de dentro de um sentir intranquilo e voltou  a destapar tudo. O motivo não foi encontrado porque não é preciso.

18.11.11

Ele foi com ela à missa

Ele sentou-se ao lado dos estranhos. Ouviu tudo o que, de dentro, podia ouvir. Percebeu que podia encontrar respostas. Não se incomodou. Ele não viu qualidades nem defeitos, olhou para o altar e conversou com Deus. Acreditou que naquele lugar podia encontrar-se, mesmo que as velas se apagassem e os estranhos fossem sacanas.

17.11.11

Ela foi à missa

Um dia ela foi à missa e encontrou estranhos. Estavam sentados, os olhos postos no infinito e os ouvidos ausentes. Ela sentou-se e viu. Viu o crente e o ateu, o honesto e o sacana, o homem e a mulher, o filho, o pai, a mãe, o vizinho, o amante e todos os que rezavam em silêncio. Encontrou estranhos com a convicção em cima dos ombros e acreditou que, ali, a verdade andava espalhada por cima de todas as dúvidas.

15.11.11

Não te preocupes

Pieter Brueghel















Não te preocupes com aquilo que dizem. Faz das palavras que ouves o teu assento. Quando te levantares, agarra em todas as que te magoaram e derrete-as. Quanto às outras, o próprio vento se encarregará de as levar para longe. Não te preocupes nunca com aquilo que se dissipa. Preocupa-te com todas as palavras que constróis. Delas não deves fazer assento.

14.11.11

Diário de Etelvina (07)

Uma das meninas da sala 33 declarou-se manipuladora. Etelvina tinha as respostas e a miúda rejeitava-as. Sempre que, de uma pergunta, surgia a resposta pronta, Etelvina perguntava:
- Se sabe a resposta porque me faz a pergunta?
- Porque sim.
- Não sabe que essa é a resposta que nada responde?
- Sei, mas gosto dela.
- Vou ter de a colocar numa espécie de castigo.
- Os castigos só servem para nos revoltarmos, dona. Você não sabe disso?
Desceu as escadas e bateu à porta da Dra. Guilhermina Guilherme. Pareceu-lhe ouvir a voz do diretor da instituição, uma voz abafada e grave, como se estivesse a sair de dentro de um cobertor. Voltou para trás e pensou ser melhor resolver tudo sozinha. Como de costume.

Paula Rego

13.11.11

"A biblioteca protege da hostilidade exterior (...)"

Obrigada, Carlos. Não fossem as bibliotecas e as dúvidas permaneceriam ainda mais espessas.

Algumas coisas que eu sei

Agora sei que depois do sofrimento pode vir a lucidez. Por cima do que antes se pensava lama, restam as pedras lisas. Agora os braços esticam-se para longe do que incomoda. Agora, enquanto escrevo, sei que algumas dores fazem falta ao entendimento.